Posted On 2019-11-06 In Artigos de Opinião, Vozes do Tempo

Discernir a realidade para um diálogo pessoal e comunitário

CHILE, Pe. Juan Pablo Rovegno/redacção •

“Esta semana no Chile tem sido de uma intensidade inimaginável. Cada espaço seguro, confortável, de rotina foi profundamente alterado e passámos por diversas emoções: incredulidade, raiva, impotência, dor, medo, compaixão, escuta, colaboração, esperança…”. Assim começou a Homilia do Pe. Juan Pablo Rovegno no Domingo 27 de Outubro, que aqui partilhamos. Embora se tenha referido à actual crise sócio-política chilena, esta reflexão pode ser perfeitamente aplicada a muitas das realidades que vivemos e vemos no mundo de hoje. É o mesmo desafio que tantas vezes foi expressado nas últimas semanas: nós schoenstatteanos devemos abandonar a ideia de viver em paz num oásis, olhando o mundo como algo que está “fora”. Temos de aterrar na realidade, ir para a periferia e sujar as mãos. Vai fazer-nos bem. Transformar-nos-á em Schoenstatt.—

 

A transição da violência irracional para uma manifestação pacífica e transversal tem sido chocante. Não há dúvida de que é fruto da oração e da oferta consciente pela paz, mas também da tomada de consciência de um problema real e de um processo que exige, da parte de todos nós, abertura e disponibilidade. Um processo que, embora incubando há muito tempo e procurando formas de expressão, necessita da nossa colaboração empenhada para chegar a uma conclusão feliz.

A primeira coisa que temos de fazer é reflectir e discernir

Houve multiplicidade de afirmações e opiniões, algumas lúcidas, outras oportunistas; houve também reprovações, defesas e ofensas; despertaram-se medos ancestrais e ressentimentos enquistados, polarizações endémicas e feridas ainda não curadas. No entanto, a primeira coisa que temos que fazer (uma vez que os espíritos, medos e especulações se acalmaram), é reflectir, discernir.

Uma reflexão pessoal, e também comunitária, que nos abra a passarmos por este processo, a sentir-nos parte de um caminho para um Chile mais verdadeiro nas suas possibilidades e limites, na sua realidade e no seu imaginário. Passar da idealização ou ideologização de um sistema (seja ele qual for) a uma realidade que exige novos olhares, novos sinais, novas formas e, sobretudo, uma nova maneira de entender o país, o desenvolvimento, a probidade, o bem comum, a justiça, a igualdade e a paz.

Conversão Pessoal e Comunitária

A nossa primeira resposta instintiva foi a oração e foi fundamental. As nossas respostas espontâneas a tanta violência têm sido para ajudar a remover escombros, varrer cinzas e partilhar, e também têm sido fundamentais. No entanto, o desafio subjacente para nós, homens e mulheres de fé, é o desafio da “conversão pessoal e comunitária com consequências sociais” e, para isso, é fundamental discernir a realidade.

Cada um de nós, mas também em comunidade (família, trabalho, grupo, curso), é chamado a discernir a realidade que estamos a viver para descobrir um Deus presente e activo na história. Um Deus que conduz a história no meio destes acontecimentos.

As leituras de hoje (27/10/2019, Domingo XXX Tempo Comum. – Ano C), podem ajudar-nos neste exercício, dando-nos pistas para esse discernimento.

Reconhecer que existe um problema real

  1. Reconhecer que existe um problema, que ele é real e não fictício ou inventado. Que precisamos de nos compadecer e compreender o problema subjacente. Não podemos ficar com medo, dor e raiva pela destruição, pilhagem e violência, nem na angústia pelas mortes e excessos do estado de emergência, nem na rejeição das aberrações reveladas pela imprensa. Temos de nos abrir ao bem comum de uma nação, a realidades que não foram tornadas visíveis, a necessidades que não foram canalizadas, a soluções que não são arriscadas. Neste sentido, a primeira Leitura (Ben-Sirá 35, 15b-17. 20-22) coloca-nos à queima-roupa com o problema: Deus não cessa de escutar o grito dos pobres. Os pobres, as viúvas e os órfãos representam situações de marginalidade e necessidade que comovem Deus também até às Suas entranhas. Mostram a dolorosa realidade da falta de compaixão, dignidade, inclusão e oportunidades. E Deus toma o partido dos marginalizados. Nós, como seguidores de Jesus, somos chamados a tomar o partido daqueles que sofrem com essa falta de dignidade, de oportunidades, de visibilidade, e isso faz parte da consequência necessária de nosso seguimento de Jesus.

Uma nova maneira de compreender a realidade

  1. Este desafio significará abrir-se a uma nova visão do mundo, a uma nova forma de compreender a economia, o Estado, o desenvolvimento, o mercado, o trabalho, as empresas, a educação, a cidadania… Não podemos ficar presos em polarizações e fantasmas herdados ou adquiridos, e que hoje não ajudam. Para muitos, a palavra justiça, o povo e a igualdade despertam fantasmas dolorosos da Unidade Popular; para aqueles que sofreram o drama da violação dos direitos humanos, as suas almas paralisam-se diante da presença das Forças Armadas nas ruas. No entanto, temos a oportunidade de olhar a realidade de uma maneira nova, não a partir da polarização ou do medo, mas do encontro e da possibilidade.

São Paulo na segunda leitura (2Tm 4, 6-8.16-18) dá-nos um exemplo radical de mudança no modo de compreender a realidade: era judeu pela religião, romano pela cidadania e grego pela formação; já era um homem adulto quando encontrou Jesus, mas este encontro mudou a sua vida e a sua visão da vida.

Transforma a sua imagem de Deus, de si próprio e da Humanidade. Esta mudança teve custos e renúncias, mas transformou-o em apóstolo de Jesus, que nos revela com a sua vida, palavras e exemplo, uma vida plena. Não para alguns, mas para todos, sem excepção.

O pecado da auto-referência

3 . Nenhum de nós pode arrogar-se “a solução” ou ser “livre do pecado” diante deste desafio social. Todos nós contribuímos para este nível de descontentamento, desigualdade, distância, frustração e violência. O viver tão fechados em nós próprios e nos nossos projectos, o sentirmo-nos confortáveis nos nossos espaços conhecidos e seguros, o fazer das nossas visões sociais, económicas e políticas um ídolo, o mantermo-nos nas nossas polarizações ancestrais, o vivermos anestesiados pelo consumo, pela virtualidade e pelo sucesso, contribuíram para o desencontro com a realidade das pessoas, situações e estruturas. O Evangelho (Lc 18,9-14) é duro na condenação desta pretensão de perfeição e auto-referência. O Fariseu sente-se virtuoso e justifica-se desprezando o Publicano. O Publicano reconhece os seus limites, o seu pecado e imperfeição, e isso torna-o sujeito de salvação, porque precisa crescer e aprender. A humildade do Publicano deve ser a nossa: a humildade em reconhecermos que este novo Chile é tarefa de todos, e envolverá generosidade e abertura por parte de todos, assim como o reconhecimento humilde dos nossos erros, que não permitiram o encontro.

 

Disse-se que o Chile despertou da violência anónima e da irracionalidade de uma sexta-feira de fúria, para a esperança e oportunidade, com rostos, de uma sexta-feira multitudinária e transversal.

 

Depende de todos nós, sem excepção, que as próximas sextas-feiras não sejam nem um pesadelo nem um sonho, mas a semente de um Chile mais fraterno, mais justo e em paz, de uma Pátria Família.

 

 

Foto da capa: iStock Getty Images,  ID:607985768, MR1805

Original: espanhol (3/11/2019). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal

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