Posted On 2020-07-12 In José Kentenich

“Poderíamos ajudar-nos mutuamente a fazer a verdade vir ao de cima”

Por Maria Fischer com  Ignacio Serrano del Pozo

Estávamos a conversar com o Professor Ignacio Serrano, um proeminente colunista em schoenstatt.org, sobre a sua ideia de entrar em diálogo com a Professora Dra. Alexandra von Teuffenbach, historiadora e autora do artigo sobre documentos encontrados nos arquivos do Vaticano com denúncias de alegados abusos de poder e, num caso, abuso sexual por parte do Padre Kentenich. Queríamos fazê-lo com a atitude que o Padre Kentenich nos ensinou e que sempre nos guiou no nosso trabalho de comunicação em schoenstatt.org. Tentamos incorporar esta atitude, em nós, como seus filhos espirituais e encontramo-la nas suas exigências de diálogo: “Admitir, pelo menos, o ponto de vista do meu interlocutor. Também acreditar, com uma fé sincera, no valor daquilo que o meu interlocutor deseja e aspira. “No meio desta conversa, uma longa entrevista com ela foi publicada no site da Igreja alemã, com muitas das perguntas que eu pensava fazer-lhe”, disse Ignacio Serrano. —

Na mesma atitude de diálogo baseado na compreensão pessoal – a atitude de admitir o ponto de vista do outro sem o tornar nosso – queremos oferecer esta entrevista, esperando que a publicação do mesmo seja um contributo de verdade, justiça e amor solidário no caminho para compreender o que Deus quer de Schoenstatt neste momento.

 

Suspeita de abuso contra Kentenich: “A verdade deve vir ao de cima”.

Alexandra von Teuffenbach está a investigar os Concílios da Igreja. Mas durante a sua investigação nos arquivos do Vaticano deparou-se com outra coisa: acusações de abuso contra o Padre Kentenich, o Fundador de Schoenstatt. O que motiva a investigadora? Quão credíveis são os arquivos – e quão credível é Schoenstatt?

Por Felix Neumann, Cidade do Vaticano – 8/7/2020

Até agora, o Fundador do Movimento Apostólico de Schoenstatt, Padre José Kentenich, parecia estar a caminho da beatificação, mas novas descobertas no arquivo lançam uma sombra sobre o Pai do Movimento: nos expedientes do pontificado de Pio XII (1939-1958), a que se acedeu recentemente nos arquivos do Vaticano, surgiram acusações de abusos. Isto foi descoberto pela historiadora Alexandra von Teuffenbach, que, lá está, a pesquisar a história dos Concílios.

Na entrevista, ela conta-nos o que encontrou, como está a lidar com as suas descobertas, e o que espera do Movimento de Schoenstatt (a entrevista foi realizada antes de a Diocese de Trier anunciar a criação de uma nova comissão de historiadores para examinar as partes agora acessíveis dos arquivos).

Pergunta: Sra. von Teuffenbach, está a investigar os arquivos do Vaticano sobre os Concílios. Como encontrou os documentos sobre o Padre José Kentenich?

 

Alexandra von Teuffenbach: A própria Obra de Schoenstatt é responsável por isto. Há mais de quinze anos, escrevi um artigo sobre Sebastian Tromp numa série sobre as personalidades do Concílio. Mencionei, muito brevemente, que ele era o Visitador Apostólico de Schoenstatt. Recebi duas chamadas telefónicas de pessoas ligadas à Obra de Schoenstatt.  Em ambas as ocasiões, perguntaram-me, com grande detalhe, sobre o que eu sabia, onde o tinha encontrado, que arquivos tinha visto. As perguntas eram tão estranhas que me lembrei delas, apesar de terem passado tantos anos: deve haver alguma coisa. Depois, quando os arquivos do tempo do Papa Pio XII foram abertos, procurei Tromp, que é o meu campo de investigação, em qualquer caso. Deparei-me rapidamente com as primeiras cartas das Irmãs que defendiam o Kentenich.

Numa carta dirigida ao Papa, falava-se das transgressões morais do Kentenich, prestei-lhes atenção e continuei a minha busca. Foi assim que encontrei o arquivo completo do Santo Ofício. E também ficou claro para mim porque é que Schoenstatt estava tão interessado no meu pequeno artigo sobre Tromp.

 

Sobre a pessoa

Alexandra von Teuffenbach é uma dogmatista e historiadora da Igreja. A italiana obteve um doutoramento com uma tese sobre a Constituição da Igreja do Concílio Vaticano II e está actualmente a pesquisar os Regulamentos do Primeiro e Segundo Concílios Vaticanos. Em 2003 passou o exame para arquivista no Arquivo Secreto do Vaticano.

 

Pergunta: Teve a impressão de que tudo isto já era conhecido pela Obra de Schoenstatt? Ou o objectivo dos telefonemas era comprovar os rumores?

von Teuffenbach: Suspeito que eles sabiam. Finalmente, encontrei cartas dirigidas à Obra. Por isso posso dizer com certeza: naquele tempo eles sabiam, pelo menos desde 1951. Se os ficheiros foram, entretanto, destruídos, não sei. Não conheço os arquivos da Obra de Schoenstatt. Durante a Visitação Apostólica, Tromp escreveu uma carta aos Superiores de Schoenstatt explicando porquê não há nada no decreto da Visitação sobre as alegadas transgressões morais: só porque algo não está no decreto, não significa que não haja nada. Mas não se queria prejudicar Schoenstatt. O facto de as acusações não terem sido mencionadas foi, portanto, um favor do Santo Ofício para com a Obra de Schoenstatt. Encontrei várias cartas de Bispos alemães da época, que não queriam perder os seus sacerdotes de Schoenstatt. Havia um interesse por parte da Igreja em que Schoenstatt fosse mantido. Daí o pensamento durante a Visitação: separamos a Obra do Fundador e tentamos salvá-la desta forma. A Visitação foi principalmente para as Irmãs de Maria, cuja contribuição para o cuidado pastoral e obras de caridade foi apreciada. O Santo Ofício estava principalmente interessado nos sacerdotes de Schoenstatt.

Pergunta: Se, se quisesse preservar a Obra e separá-la de Kentenich – como se poderia chegar à sua reabilitação apenas quinze anos mais tarde com este ficheiro detalhado?

von Teuffenbach: Se houve “reabilitação”! Não encontrei isto em nenhum ficheiro, e Schoenstatt não publicou os seus documentos. A Obra fala sempre de um “decreto de anulação”. Mas até agora, ninguém me mostrou isso.

Pergunta: Mas é um facto que Kentenich pôde regressar do exílio à Alemanha em 1965.

von Teuffenbach: Há duas coisas a considerar.  A primeira: Kentenich já era muito velho nessa altura. Mesmo um assassino é libertado quando é velho e já não representa um perigo. Mas isso não significa que ele não tenha cometido o crime, não significa que tenha havido uma reabilitação, apenas uma libertação. A segunda: 1965 é ainda o tempo do Concílio. No final de muitos Concílios existe um “ano de graça”. Todos estão contentes por terem concluído com sucesso o Concílio e chega a grande vaga de indultos. Isto já aconteceu antes, também aconteceu no Concílio Vaticano II – isto faz parte do espírito de um Concílio. Isto poderia ser uma explicação. Mas não conheço nenhum documento sobre o assunto.

Pergunta: Como são as suas descobertas? São registos sistemáticos ou apenas um monte de notas e papéis?

von Teuffenbach: São os “registos oficiais do julgamento”, com tudo o que os acompanha: cartas, respostas a elas, declarações a favor e contra elas. Com excepção das transcrições de documentos e actas de conversas, também com o Pe. Kentenich, quase não existem notas privadas de Tromp. Na história oficial de Schoenstatt, parece frequentemente que a Visitação foi um prazer privado para Tromp. Mas foi uma Visitação Apostólica, não uma visita de Tromp. Tromp tem a tarefa de assegurar as pegadas. É claro que o investigador também pode cometer erros. Mas isso está sob o controlo de um juiz de instrução, há um advogado, há um julgamento, e depois um veredicto. Foi assim que aconteceu no Santo Ofício. Tromp entregou as suas provas e os consultores do Santo Ofício reviram-nas. A propósito, nessa altura, quase todos eram Religiosos que podiam avaliar se, uma carta incriminatória de uma Religiosa reformada era plausível ou se, simplesmente, se tratava de uma questão de crítica. Depois os documentos são enviados para a Congregação dos Cardeais, e finalmente tudo é apresentado ao Papa – e Pio XII é um dos que sempre quis saber tudo exactamente antes de assinar qualquer coisa. São muitos passos, e muito breve, Tromp não tinha mais nada a dizer.

Pergunta: Nas suas publicações dá uma boa nota à Igreja; foi sempre uma questão de se dar crédito às pessoas afectadas e de as levar a sério. Será apropriada uma avaliação tão positiva , tendo em conta a extensão dos alegados acontecimentos de Kentenich, que no final não tiveram consequências para a Obra de Schoenstatt?

 Von Teuffenbach: Basicamente sim. Fiquei surpreendida com a objectividade do julgamento, com a quantidade de vozes dissidentes obtidas, mesmo de pessoas que não pertenciam ao Santo Ofício. As excepções foram feitas, especificamente, para que estas pessoas pudessem ver os arquivos e comentá-los. As cartas de cada uma das Irmãs que se dirigiram ao Papa foram apresentadas a Pio XII, e ele ordenou exames adicionais, na margem, de vez em quando. As Irmãs foram levadas muito a sério, só encontrei um lugar com um comentário desagradável: um Bispo alemão escreveu, muito depois da Visitação, que considerava Tromp impróprio como Visitador, porque considerava tudo demasiado racional, mas as mulheres em questão não eram racionais, consequentemente, “não podem pensar, são só sentimento”. Nos documentos há também muitas testemunhas que falam a favor de Schoenstatt.

E há provas de uma campanha de Schoenstatt, uma vez que aparecem muitas cartas que são quase idênticas, isto não foi muito inteligente.

Pergunta: A linha de defesa da Presidência Geral da Obra de Schoenstatt é que se, as acusações fossem verdadeiras, o processo de beatificação em 1975 nunca teria sido iniciado, afinal de contas, existe um “nihil obstat” da Congregação para a Doutrina da Fé. De facto, coloca-se a questão: se tudo isto estava tão bem documentado, porque é que o procedimento não foi terminado imediatamente em 1975?

von Teuffenbach: Para avaliar isto, é necessário conhecer-se o procedimento. Antes do “nihil obstat” não há investigação de arquivo. Para isso (para esclarecer isto em pormenor), um historiador teria normalmente de passar vários anos a pesquisar os documentos. Isto teria sido mais fácil no caso de Kentenich, porque os expedientes da Visitação estão bem preparados e encontram-se nos arquivos do Vaticano. Mas nos processos mais antigos os documentos estão espalhados por todo o mundo, a investigação anterior seria demasiado dispendiosa. Por conseguinte, o procedimento sempre funcionou de tal forma que o requerente traz os processos, e com base nisso é concedido um “nihil obstat”. No caso de Schoenstatt, esta declaração de ausência de objecções é provavelmente válida apenas para os documentos que a própria Obra forneceu. Além disso, é possível que não tenha sido a Congregação para a Doutrina da Fé, como disse Schoenstatt, mas a Congregação para as Causas dos Santos, a responsável por isso.

Pergunta: O antigo Visitador, Bernhard Stein, foi entretanto Bispo de Trier de 1967 a 1980, ou seja, exactamente o tempo entre a morte de Kentenich e os primeiros anos do processo de beatificação. Porque não falou ele?

 von Teuffenbach: Não posso dizer nada sobre isso. Estes ficheiros ainda não são públicos nos arquivos do Vaticano, pelo que não os conheço. Mas a Obra de Schoenstatt poderia tê-los. Por isso, faço também aqui um apelo à Obra: entregar os ficheiros e torná-los disponíveis na Internet. Isto irá beneficiar todas as partes envolvidas.

 Pergunta: As primeiras reacções da Obra de Schoenstatt foram muito defensivas. Poderia o Movimento ter algum interesse em tornar tudo isto público?

von Teuffenbach: Ficaria feliz se algo de positivo saísse disto para Schoenstatt, se a Obra pudesse honestamente assumir o passado, sem ter de guardar segredos. Mas isso, nada tem a ver com o meu trabalho. Fiz um estudo histórico nos arquivos e, no início, não queria publicar os resultados como um artigo científico. Dessa forma, pude dá-los a conhecer a um público mais vasto, como é frequentemente o caso das questões da história contemporânea. Queria lançar alguma luz sobre a história de uma comunidade e de uma pessoa. Infelizmente, o que li nos arquivos não era do conhecimento do público e, como vejo pelas reacções, nem sequer da maioria dos membros de Schoenstatt.

Pergunta: Embora Kentenich pareça impecável no seu comportamento antes de 1948, do ponto de vista actual, termos como “Aliança de Amor” e “Princípio paternal” parecem estranhos e latentemente agressivos. Serão apenas sensibilidades contemporâneas? Será que tais elementos da espiritualidade de Schoenstatt já constituíam um problema no seu tempo?

 von Teuffenbach: Os conceitos são um problema em ambas as Visitações. Durante a primeira Visitação do Bispo Stein, já tinha havido uma tentativa de reconsiderar algumas das palavras porque soavam estranhas ou ambíguas a pessoas de fora. O problema não foi principalmente a escolha das palavras, nem a pedagogia ou a teologia de Schoenstatt. No centro das críticas estava o tratamento dado às Irmãs de Maria.

Pergunta: Como historiadora, investiga o passado. Da sua perspectiva e dos resultados da sua investigação, podemos aprender a abordar os abusos na Igreja hoje em dia?

 von Teuffenbach: Ao lidar com as acusações, há declarações que me têm incomodado muito. Numa reacção de Schoenstatt ouvi dizer que só sabiam de um caso, mas a acusadora era esquizofrénica. Esta afirmação significa que uma mulher esquizofrénica não pode ser vítima de abuso. Acho isso terrível. É claro que as pessoas afectadas também podem ter problemas psicológicos. Naturalmente, as acusações podem ser falsas. Mas há ainda muito a fazer para aumentar a nossa sensibilidade ao lidar com as pessoas afectadas. Não devemos simplesmente ignorar as suas declarações.

Tenho também uma sugestão processual para a Igreja: reintroduzir o antigo “Advocatus diaboli” (NR “advogado do diabo”) nos processos de beatificação e canonização. Este é um adversário que deve descobrir tudo o que fale contra a canonização. Este papel já não existe. O procedimento ganharia em objectividade se alguém trabalhasse sistematicamente contra ele.

 Pergunta: Escolheu um artigo no jornal Tagespost e uma carta ao jornalista do Vaticano Sandro Magister para publicação. Porquê esta forma e não uma publicação científica?

 von Teuffenbach: O meu artigo é apenas uma introdução a uma publicação científica. No início pensei num artigo numa revista científica. Mas agora que há tanto interesse, uma edição das actas do julgamento parece-me mais apropriada. Estou apenas à procura de um editor. Os textos estão editados, é apenas uma questão de impressão até que a publicação científica chegue.

Pergunta: Nessa edição, no entanto, apenas os documentos abertos nos arquivos do Vaticano podem, por enquanto, aparecer.

 von Teuffenbach: Sim, só posso pedir a Schoenstatt que entregue o material dos seus arquivos e assim coloque a discussão numa base completamente nova e objectiva. Poderíamos ajudar-nos mutuamente para trazer a verdade ao de cima.

Pergunta: Qual foi a sua motivação pessoal para a tornar pública?

 von Teuffenbach: Não sou uma inimiga de Schoenstatt e nunca o fui. Não gosto de colocar as pessoas erradas num pedestal e praticar o culto da personalidade à sua volta. Portanto, para mim era uma questão de consciência publicá-lo. Fico em silêncio e deixo isto continuar, ou digo alguma coisa? Por isso decidi torná-lo público, sabendo muito bem que estava a magoar pessoas que pensaram toda a sua vida que tinham um santo diante de si. Mas é a verdade que nos torna livres, e não um conto de fadas.

Por Felix Neumann

 

Fonte: Portal Internet da Igreja Católica na Alemanha www.katholisch.de,

https://www.katholisch.de/artikel/26097-missbrauchsverdacht-gegen-kentenich-die-wahrheit-muss-ans-licht

Traduzido e publicado com a permissão de Björn Odendahl, editor-chefe do katholisch.de

 

 Original: alemão (11/7/2020). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal

 

Requisitos para o diálogo segundo o Padre Kentenich
Cada diálogo requer, como requisito indispensável, a procura daquilo a que o Padre Kentenich chama compreensão pessoal. Com base nisto, se entende a regra do diálogo estabelecida e praticada pelo Pe. Kentenich e espera-se a sua aplicação por parte dos seus filhos espirituais e das comunidades de Schoenstatt. Entendemos que a regra, enquanto tal, é uma expressão, um meio e uma certeza de uma atitude de Aliança, um pré-requisito em cada comunidade federativa e pluralista, ou seja, mais do que nunca na sociedade do século XXI.

“A compreensão pessoal pressupõe:

  • Seguir a argumentação (estar atento) do outro, do meu interlocutor.
  • Ressonância da minha alma. Isso é muito importante. Se eu apenas ouço e não processo os meus pensamentos com o que o meu interlocutor quer dizer, não podemos falar de compreensão. Deve haver algo que ressoe dentro de mim, do que ressoa com o meu interlocutor.
  • Admitir, pelo menos, o ponto de vista do meu interlocutor.
  • Também acreditar, com uma fé sincera, no valor daquilo que o meu interlocutor quer e ao qual aspira.
  • o Uma crença firme na missão pessoal do meu interlocutor. ” 

Fonte: Jornada pedagógica para os  Ramos femeninos, 1932

 

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2 Responses

  1. Lena Castro Valente says:

    Li com muita atenção esta entrevista – até porque fiz a sua tradução para portugués – e, sem sequer pôr em causa os documentos encontrados e dissecados pela historiadora, a ideia que me ficou das respostas dadas ao entrevistador foi, que a Dra von Teuffenbach imediatamente fez um julgamento
    apressado (substituindo-se, assim aos juízes oficiais que julgarão o caso com muito mais material à sua disposição.) É o que hoje se conhece como julgamento na Praça pública.

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