Entrevista a Ignacio Suazo Zepeda sobre “A Nossa Mesa-Redonda: Diálogos pelo Chile” (NM) •
No contexto da crise social do Chile, resultante da explosão social de 18 de Outubro, e perto de se iniciar um processo de aprovação ou rejeição de uma nova Constituição para o país, a Universidade Católica do Chile e a Fundação Vozes Católicas convocaram 60 personalidades para falarem sobre os grandes desafios destes tempos. Este diálogo terá lugar durante três meses em torno de nove mesas-redondas temáticas: “a cidade, a pobreza e a segregação”, “a vida económica e profissional”, “a saúde integral e a protecção”, “a educação e os educadores”, “os cuidados com a vida e a Criação”, “o tecido social e a convivência”, “a segurança e os direitos humanos”, “a família e o lar”, e “o Estado ao serviço das pessoas”. O resultado deste debate civil será plasmado numa publicação final que será entregue aos actores relevantes do mundo político e social chileno. —
Falámos sobre esta iniciativa com Ignacio Suazo Zepeda, Mestre em Sociologia pela Universidade Católica, investigador e chefe de conteúdo da Organização Não Governamental (ONG) “Comunidade e Justiça”, que participa no Ramo Profissional do Santuário do Campanário em Santiago, Chile. Foi convocado para este projecto para trabalhar na mesa-redonda “família e lar”. Vários membros do Movimento de Schoenstatt estão também a colaborar nesta iniciativa: o Padre Francisco Pereira, sacerdote do Instituto dos Padres e Director de Maria Ayuda; Pablo Vidal, do Instituto das Famílias e especialista em sustentabilidade; Francisco Gallegos, professor de Economia da Universidade Católica, assim como Carmen Dominguez, da União das Famílias e advogada do Centro UC da Família.
Para começar, fale-nos sobre esta iniciativa. Como funciona “A nossa mesa-redonda: diálogos pelo Chile”?
O projecto consiste em nove mesas-redondas sobre nove dimensões fundamentais para a realização do bem-comum no Chile. Pede-se às mesas-redondas que, se organizem e que se encontrem pelo menos quatro vezes para conversar e dialogar, tentando chegar a um diagnóstico e a uma ou mais propostas para o nosso país, nascidas da nossa identidade católica. Para facilitar o diálogo, temos uma secretária que toma nota dos nossos comentários e é responsável pela recolha dos textos que citamos e enviamos. O resultado deve ser algo simples, não mais do que alguns parágrafos por mesa-redonda.
Embora os organizadores nos tenham fornecido algumas orientações e ideias de trabalho, a atitude fundamental foi, sempre, a de dar às mesas-redondas um espaço para uma procura sincera da verdade e, a partir daí, para as melhores propostas para o Chile que se-nos avizinha.
Um dos objectivos desta iniciativa – nas palavras da directora executiva das Vozes Católicas – é olhar para as nossas feridas a fim de ansiarmos por um Chile mais integrado e acolhedor. Quais são as feridas que parecem ter partido ou danificado o tecido social no Chile?
Na verdade, essa questão foi o ponto de partida da nossa conversa. Agora, posso falar a partir do tópico que nos convoca, que é a mesa-redonda “Família e Lar”.
Na primeira sessão apareceram os temas recorrentes: a má compreensão da família do ponto de vista da política pública, a fraqueza do casamento como instituição, as dificuldades e receios no seio da Igreja para falar das verdades que sempre existiram na família, a mentalidade anti-natalista prevalecente. Mas finalmente, devido à notícia do aumento explosivo dos pedidos de pensão no contexto da retirada de 10% dos fundos de pensões, tomámos a decisão de trabalhar sobre um assunto ao qual, como schoenstatteanos, não somos de modo algum indiferentes: a ausência paterna. Estamos profundamente magoados pela falta de pais que possam assumir um papel preponderante na família. Na mesa-redonda chegámos à conclusão de que esta ausência está na origem de muitos dos problemas mais importantes da família no Chile de hoje.
O diálogo supõe interesse em conversar e ouvir para nos pormos de acordo. Como podemos falar quando, parece que vivemos em tempos de ressentimento e raiva, quando mais do que uma mesa-redonda há uma enxurrada de redes sociais cheias de barulho e gritos, queixas e desqualificações?
Porque parece que a polarização está a ganhar terreno mas, estas instâncias que promovem o diálogo são mais importantes. Na minha experiência, o quadro tem sido um caso exemplar (e porque não dizê-lo: claro) do potencial que nós, católicos, temos de dar um contributo para a paz social. E, é assim devido a pequenas atitudes e práticas muito simples, mas muito poderosas. Em primeiro lugar, porque há amor pela verdade e confiança na capacidade do ser humano de a conhecer. Isto é muito importante, porque na mesa-redonda estamos permanentemente orientados a pensar nos princípios últimos o que, a longo prazo, permite o progresso no diagnóstico. Quase como um corolário do acima exposto: há “fome de conhecimento”. Existe uma vontade de nos ouvirmos, partilharmos textos, revê-los e integrá-los na discussão. Em segundo lugar, não iniciamos a conversa sem antes rezarmos. Este é também um sinal poderoso: confiar os frutos da discussão a Deus. Isto ajuda a trazer-nos de volta ao lugar humilde daqueles que, embora saibam que estão abertos à razão, estão conscientes da sua fraqueza e compreendem que precisam da iluminação do Espírito Santo para poderem avançar.
“A identidade do nosso país está na sua história, no seu povo e nos seus valores, nestes elementos perfila-se uma ‘alma do Chile’, coalhada pelo Evangelho”, escreveu o capelão da Universidade Católica Fernando Valdivieso para explicar o significado do projecto. No entanto, para não poucos autores (Gonzalo Rojas May, por exemplo) a alma do Chile está doente, uma vez que estes são tempos de precariedade psíquica e cívica. De facto, o Chile tornou-se o país latino-americano com o maior consumo, per capita, de ansiolíticos e antidepressivos. O que se passa na «alma do Chile»?
A questão está directamente ligada à resposta anterior, porque precisamente aquilo que, é tão propriamente católico, como a conjugação entre fé e razão, é algo que perdemos dolorosamente como país. E o facto do Chile estar gradualmente a perder a sua fé não é novidade, uma vez que basta ver alguns inquéritos para se notar que a religiosidade está a diminuir em praticamente todos os indicadores: o número de pessoas que confiam na Igreja, que se declaram católicas, que recebem os Sacramentos, que assistem à Missa, etc. A questão é que uma fé que não é tornada transparente por actos e em pessoas específicas é diluída. Assim, não é surpreendente que durante os últimos anos tenhamos também deixado de lado a crença no próprio Deus; e isto é – no final – um declínio no número de pessoas capazes de confiar num Deus Providente.
Mas o que também é muito chocante (embora na realidade não deva ser) é pensar que a perda de fé acaba por nos conduzir à atrofia da razão. Mais do que qualquer outra coisa, empreender um diálogo sem a esperança de verdade ou fé de que Deus guia esse caminho reflexivo é, no mínimo, um empreendimento que será difícil de alcançar.
Mesmo assim, nós, católicos, continuamos a ser a maioria da população. Por que razão não somos capazes de desdobrar as riquezas da nossa fé e colocá-las ao serviço do nosso país? Por que razão o catolicismo não permeia as nossas vidas? E penso que na mesa-redonda destacamos algumas das suas raízes profundas. Será muito difícil fazê-lo enquanto não houver Homens que transmitam e irradiem a autoridade de Deus Pai através da sua própria autoridade natural.
O sociólogo Eugenio Tironi disse que uma das razões que explica a ruptura de 18 de Outubro é que as instituições tradicionais de coesão social – os “airbags sociais”, como lhes chama – expiraram. Entre esses airbags nomeia a família, a nação e a religião. De que forma é que a crise da Igreja – devido ao abuso sexual e à política de encobrimento – também é responsável por um certo sentimento de orfandade que contribuiu para o surto?
É difícil saber. Isto não é realmente algo que tenhamos discutido na mesa-redonda. Na minha opinião, a perda de autoridade da Igreja responde a acontecimentos anteriores e mais profundos. A Igreja deixou de ser uma autoridade e uma referência quando deixou de dar respostas e compromissos vitais. E isso acontece quando deixa de ser mãe; quando deixa de ser família. Não é muito politicamente correcto dizê-lo, mas acredito sinceramente que, para muitos, os dolorosos casos de abuso e encobrimento só vieram para confirmar e reforçar um abandono da Igreja que foi anterior.
Embora possa ser imprudente dizê-lo, penso que esta dificuldade da Igreja em ser família é a causa profunda por detrás dos abusos. Nesse caso, os abusos e encobrimentos seriam sintomas de algo muito mais profundo.
Devido aos efeitos do neo-liberalismo e do individualismo, não são poucos os chilenos que parecem querer avançar para um Estado social ou um Estado que proporcione direitos sociais. Mas este “Estado providencialista” pode significar uma imensa máquina burocrática anónima e impessoal que acaba por acentuar um individualismo de direitos… O que significa um “Estado ao serviço das pessoas”?
É um assunto que escapa ao que estamos a ver na mesa-redonda e que eu não estudei tanto. Mas o desafio fundamental do Estado é sem dúvida o mesmo que o da Igreja: ser família. O Estado tem o potencial de tornar transparente a autoridade de Deus Pai e de emular alguma da autoridade natural do pai. Para o conseguirmos, sem dúvida, precisamos de implementar uma dimensão simbólica que é muito difícil para nós hoje em dia: ritos (tais como marchas militares), discursos comemorativos, gestos, etc. Mas há também uma dimensão operacional que deve ser articulada e desenvolvida. Estou a pensar rapidamente em políticas pró-família eficazes, identificando e colocando os mais pobres no centro (no sentido de ter uma opção preferencial pelos mais pobres), reforçando os organismos intermediários e, acima de tudo, encontrando formas de encarnar o princípio da solidariedade.
Mas passar destas linhas amplas e meio concretas para “atitudes fundamentais” que alimentem os políticos chamados a liderá-las, é uma tarefa titânica.
Nesta última pergunta, queremos voltar à mesa-redonda “família e lar”. A família parece ser a grande esquecida das políticas públicas de direita e esquerda no Chile. Os incentivos para aumentar a taxa de natalidade são escassos e esta mesma instituição parece estar desfocada pelos efeitos das leis dos últimos anos que começam a retirar o poder dos pais. O falecido historiador Gonzalo Vial viu, de forma premonitória, em 2007, que esta crise de valores familiares e de educação doméstica, intimamente ligada a níveis mais elevados de delinquência, violência e consumo de drogas e álcool, conduziria mais cedo ou mais tarde a uma explosão social. Em que pode contribuir a mesa-redonda do diálogo e a Doutrina Social da Igreja como remédio para esta crise da família?
Acho que discutimos todos os factos que aqui muito bem citaste, por isso acho que não nos saímos tão mal como uma mesa-redonda de família! Pessoalmente, penso que precisamos de “acreditar na fábula”: confiar que a concepção católica da família, tal como está estabelecida na DSI, permite o desenvolvimento de políticas eficazes de apoio às famílias. Isto é algo que tem sido dito por algumas vozes da mesa-redonda, mas que eu faço minhas.
Parece que nós, católicos, temos muito medo de falar sobre a família – ou melhor – das suas componentes estruturantes: o casamento e a educação dos filhos (e eu incluo-me a mim próprio). Mas acontece que o melhor lugar para uma criança nascer é dentro de um casamento saudável e estável. E isso é algo para o qual existem muitas provas empíricas. Reconhecer isto não significa desprezar as pessoas que, por uma razão ou outra, se encontram em diferentes situações familiares, mas também é um problema quando não somos claros sobre o que queremos alcançar.
É também um problema quando os pais desistem do seu papel: ser verdadeiras autoridades. E há muitas provas de que as crianças desenvolvem-se melhor quando os seus pais conseguem combinar uma dimensão “normativa” com uma dimensão “afectiva”.
O problema é que muitas pessoas desesperam com estas coisas, no sentido em que perdem a esperança de poder alcançar estes bens: um casamento para toda a vida e o exercício da verdadeira autoridade.
Na nossa mesa-redonda, decidimos e escolhemos um grande tema para o nosso trabalho, que penso estar directamente relacionado com a reflexão anterior: a ausência do pai. Um pai ausente é um homem que desistiu dos dois papéis anteriores, o de marido e o de pai. Isto é tão frequente no Chile!
Tornou-se comum dizer que o Chile é um país patriarcal. Na mesa-redonda estamos convencidos de que se trata de um erro, simplesmente porque na maior parte do nosso país não há pais. E provavelmente, excepto para grupos e momentos específicos, nunca houve. No século XIX, já 20-30% da população nasceu fora do casamento. Mesmo a nível sacerdotal temos falta deles: historicamente, o Chile tem tido muito poucas vocações, como o Pe. Alberto Hurtado deixa claro no seu famoso “É o Chile, um país católico”. Assim, a questão, a pergunta angustiante que nos colocamos é como promover a paternidade. Como é que conseguimos fazer dos homens chilenos verdadeiros pais? Agora, uma primeira luz que temos a este respeito é que este é um tema pouco presente na Igreja, pelo menos a nível hierárquico e organizacional diocesano. Assume-se como um facto e não como um assunto a ser enfrentado pastoralmente. Talvez se conseguirmos encontrar respostas a partir da Igreja, seja mais fácil dar respostas como católicos ao país. Acredito que, se conseguirmos articular e desenvolver bem este tema, o da ausência paterna, podemos dar um bom contributo ao Chile nesta matéria.
Entrevista: Ignacio Serrano del Pozo, União de Homens, Colunista de schoenstatt.org, Chile
Original: Espanhol (11/9/2020). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal