Columna P. Enrique Grez López

Posted On 2021-10-24 In Coluna - P. Enrique Grez López

Tornaviaje. Arte Latina, Sagrada e Intercultural

Pe. Enrique Grez •

A Tornaviaje era a viagem de regresso ao continente para os espanhóis que, tinham partido na viagem para o Novo Mundo. Os galeões não transportavam apenas ouro e prata da América. Entre a carga estava também a preciosa cultura que estava a ser forjada. —

Anónimo Novohispano, Dominio público, via Wikimedia Commons

Novohispano anónimo, domínio público, via Wikimedia Commons

A exposição do Museu do Prado para o Outono de 2021 é uma festa cultural. Trata-se de uma exposição abrangente, com mais de 100 obras de toda a América Latina. Embora existam obras de carácter histórico, civil ou decorativo, o género de arte sacra é a expressão mais importante do génio ibero-americano.

Um aspecto que se destaca é que a maioria dos objectos da exposição são provenientes de museus, conventos e catedrais espanhóis. Isto é indicativo do imenso volume de obras produzidas na América Colonial e, de como esta arte foi bem recebida na península. Os materiais abundantes na exposição provêm de paróquias e comunidades espanholas que, não só mantêm, como continuam a utilizar estas peças nos seus ritos e práticas. Entre outros, há crucifixos em tamanho real, pinturas de diferentes advocações marianas, ornamentos para a Missa, jóias para vestir Virgens e objectos de sacristia. É arte a ser utilizada, disponível para as agências dos seus proprietários. Um verdadeiro conforto nestes tempos de extrema capitalização.

À medida que caminhamos pelos salões e corredores, o fascinante mundo de outrora aparece-nos, povoado por santos, Beatos e devotos, animais exóticos, tecidos brilhantes e frutos luxuriosos, florestas, minas e cidades construídas sobre as misteriosas ruínas de outras. Assim nos é revelado um mundo híbrido, como lhe chama García Canclini, onde há trocas calculadas e negociadas a muitos níveis.

A Europa Antiga dá o que lhe é próprio através da Academia e das técnicas do Velho Mundo que emigram nas mentes, corações e mãos dos espanhóis. Os povos nativos contribuem com o que lhes é próprio, os seus nobres materiais, os seus conhecimentos e visões do mundo. Os Crioulos e os mestiços agitam este guisado no qual tudo é cozido a lume brando. Nesta arte latino-americana existe uma fusão medida de materiais (penas, pigmentos, madeiras, metais), técnicas (desde incrustações de insectos ao chiaroscuro barroco), símbolos (animais locais como a lhama e animais europeus como o cavalo), devoções (a Copacabana americana e a Imaculada espanhola), e pragmática (objectos podem ser usados para procissões, devoções privadas, a sobrevivência da cultura vencida ou a validação social dos retornados).

Tomemos apenas um exemplo. Numa das últimas salas encontramos o ciclo sobre a vida de Nossa Senhora. Mostra várias cenas da Sua vida: a Sua Concepção, Apresentação e Assunção, entre outras. As pinturas são pintadas utilizando técnicas que combinam estilos da China, México e Espanha. Do Oriente vem o uso de ornamentos de madrepérola e florais com pequenos pássaros e corais falsos. Da Nova Espanha vem um trabalho delicado, caras doces e desenho que realça a redondeza do corpo. A Europa acrescenta temas e composições cristãs. É-nos apresentado um carnaval de negociações culturais ao longo de toda a linha; um precioso conjunto destinado ao culto cristão mas cheio de acenos de cabeça às culturas dos mestiços.

Nós, americanos, vivemos a interrogar-nos sobre quem somos. Variados no nosso passado e presente, nunca reconhecemos bem as fontes abundantes, dolorosas e alegres da nossa cultura. A nossa é ameríndia, mas também asiática e africana e, claro, ibérica… o que é “muito dizer”: um pouco romana e fenícia, grega, celtibera e judaica, muçulmana, visigótica e quem sabe o quanto mais. Como nos tornámos naquilo em que nos estamos a tornar? Nesta apresentação de arte intercultural vemos, como fotografias, cenas desse lento processo. Aqui, numa dança de códigos e materiais, os nossos muitos passados e a esperança infinita que brota do nosso “estar no meio” são entrelaçados. É uma bela lição para o presente.


Ficha Técnica

TÍTULO: Tornaviaje. Arte iberoamericana em España
LUGAR: Museu do Prado, Madrid. Espanha
DURAÇÃO: de 5 de Outubro de 2021 até 13 de Fevereiro de 2022
CURADOR: Rafael López Guzmán
DESCRIÇÃO: Exposição com obras de arte de origem hispano-americana
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INFORMAÇÃO:

Esta coluna é sobre uma exposição de arte que tem lugar numa determinada cidade. Entende-se que nem todos os leitores a podem visitar. Para que a distância não seja um impedimento para desfrutar, sugere-se que visite o website do museu, onde poderá admirar algumas das obras mais notáveis. A coluna é também um convite à contemplação de obras de arte relacionadas que estejam mais à mão.


Coluna do Pe. Enrique Grez

 

Original: espanhol (23/10/2021). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal

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