Pe. Enrique Grez •
Nos últimos meses tenho-me refugiado na poesia. Após anos de leitura de artigos de revistas, textos teóricos e técnicos, estou a encontrar descanso na palavra cantada e em verso. Caí neste escapismo da arte agora que o mundo está a girar um pouco mais lentamente e os problemas globais estão a pressionar-nos. Precisamente neste momento em que as explicações da ciência salvam vidas, mas não podem acompanhar a sua projecção, é quando me recolho na lírica. Agora que os canhões estão trovejantes, temos de voltar à ternura de umas letras que assobiem suavemente. —
Voltei à poesia por causa da minha pesquisa sobre peregrinações. Quando estava a tentar fechar a minha tese sobre a religiosidade popular no Sul da Índia, tropecei por acaso numa obra de Anne Carson: Tipos de Água; O Caminho de Santiago. Grande foi a minha surpresa quando descobri que ela não era uma especialista em antropologia, mas uma professora grega que escreve poesia. O seu trabalho sobre a peregrinação, estruturado em torno das etapas do Caminho Francês, tornou-se um ponto de referência para aqueles de nós que se dedicam ao estudo dos viajantes sagrados. Li-o tardiamente na minha investigação. Mas isso reflecte apenas a minha cultura medíocre, uma vez que o autor tem uma ampla circulação e numerosos prémios, incluindo o Princesa das Astúrias de 2020.
As experiências do Caminho
O livrinho surpreendeu-me. É curto. Dia após dia, vai narrando as suas experiências do Caminho. Há as paisagens, a aridez de Castela e a humidade da Galiza. Há também a solidão, um presente desolado como os campos; as pedras, os animais montados em capiteis românicos, o Caminho, claro. Há também a proximidade de um apaixonado. Ela chama-lhe Cid, uma espécie de cavaleiro que lhe abre o caminho mas não sabe bem como a acompanhar. Mas há muito mais. Existem os Tipos de Água, a graça nas suas múltiplas formas.
Carson é generosa a dar definições: o que é uma porta, um santuário ou um peregrino?
“Os Peregrinos eram pessoas que se perguntavam, que se perguntavam: “Com quem irei encontrar-me agora?
“Os peregrinos eram pessoas a quem aconteciam coisas que só acontecem uma vez”.
“Cada peregrino acerta à sua maneira.
As primeiras etapas em Saint Jean Pied de Port e a travessia dos Pirenéus pareceram-me uma narrativa algo anedótica. Mas inevitavelmente, tal como a própria vida, o texto torna-se denso. Quando atravessa La Rioja e entra em Castela, as paisagens abertas dão lugar a uma prosa que se assemelha ao misticismo do deserto e a Teresa. A luz dessas planícies ofusca. O românico de Leão é perturbador. El Bierzo está marcado pela impaciência de não chegar. Tudo são passos e passos que não terminam. Na Galiza, a reflexão escurece um pouco, como se não quisesse chegar. Os dias em Santiago e Finisterra estão cheios de espiritualidade, uma espiritualidade que descreve os monumentos e oferece uma espécie de fenomenologia do peregrino.
Com a aproximação da Quaresma, que é entre outras coisas uma peregrinação, os Tipos de Água oferecem-nos um elenco de cenas misteriosas que nos podem ajudar a interpretar os nossos processos de fé.
Ficha Técnica
TÍTULO: Tipos de agua; El camino de Santiago
EDITORIAL: Vaso Roto
COLECÇÃO: Cardinales
TRADUTOR: Sara Cantú Pérez de Salazar
Original en inglés; disponível em espanhol na Amazon e na Fnac
Original: espanhol (10/3/2022). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal