P. Francisco Pereira

Posted On 2023-11-08 In Maria Ayuda, obras de misericórdia

Maria Ayuda foi o lugar onde a misericórdia de Deus feita carne, me tocou o coração

CHILE, entrevista ao Pe. Francisco Pereira, por Álvaro Valenzuela P.

A Comunidade dos Padres de Schoenstatt e o Movimento de Schoenstatt no Chile em geral, receberam com surpresa no início de Outubro a grande decisão tomada pelo Padre Francisco “Pancho” Pereira. Depois de vinte anos como Director Pastoral da Corporação Maria Ayuda, ele decidiu afastar-se e assumir novos desafios. Ele diz-se muito feliz com o que conquistou nestas duas décadas e muito esperançoso com os desafios que estão por vir para esta importante Instituição que cuida de crianças e adolescentes com os seus direitos violados e que este ano completa 40 anos de existência.

Vinte anos é muito tempo para uma tarefa como esta. O Padre Hernán Alessandri, fundador de María Ayuda, pôde ficar durante doze anos, mas teve de renunciar à sua tarefa de Director Pastoral, devido a uma doença complicada. Por outras palavras, eu estive com María Ayuda mais de metade dos quarenta anos”, diz o Padre Pancho.

O Padre Pancho Pereira deixa um legado que inclui a criação de nove Centros de acolhimento para crianças vulneráveis em sete regiões do Chile, de Iquique a Temuco. No total, onze programas residenciais, um programa de oncologia e centenas de crianças se formaram nestes Centros de acolhimento.

O que significaram para si estes vinte anos como Director da Pastoral de Maria Ayuda?

Em primeiro lugar, significou conhecer e experimentar por dentro um mundo totalmente estranho, diferente do que eu já tinha visto ou pensado: o mundo das crianças em perigo, um mundo que poucas pessoas conhecem. Um mundo onde se encontram crianças que foram gravemente violadas nas suas próprias famílias e que têm de ser colocadas em lares de proteção. Crianças que, através dos tribunais, vêm para residências como a nossa, porque foram vítimas e, portanto, não podem continuar onde estão. Isto fez que eu me identificasse e me envolvesse de corpo e alma nesta realidade e a tornasse minha, uma causa maravilhosa que herdei do Padre Hernán. Ele iniciou-a, lançou a semente, lançou as bases e, sobretudo, ofereceu a sua vida e coube-me a mim, juntamente com pessoas de grande generosidade, nas Direções e Conselhos regionais, desenvolvê-la, ampliá-la e fazê-la crescer. Quando cheguei, havia apenas um Lar, era uma aldeia ou lugarejo com dez pequenas casas, para setenta raparigas em Maipú, bem como o Lar de Oncologia e a escola em Puente Alto. Depois a Obra foi crescendo até chegar ao que é hoje, com dezanove residências de norte a sul. Cheguei em 2003 e em 2005, por razões de financiamento, juntámo-nos a essa grande entidade estatal que era a Sename, hoje chamada Mejor Niñez. Isso fez que começássemos a receber também crianças com um perfil que o sistema nos impunha, muito mais deterioradas na sua saúde mental.

Uma segunda coisa importante foi assumir, embora nunca o tenha imaginado, ser o rosto externo desta Instituição que era muito pouco conhecida no início. Eu tinha que ser o rosto para a televisão, para os media em geral e, claro, para a Família de Schoenstatt. Sentia que Maria Ayuda e eu éramos um só. Finalmente, significou também que a Comunidade dos Padres de Schoenstatt, através da minha missão, podia assumir algo que era mais do domínio do Padre Hernán. Ou seja, os Superiores decidiram que todos os esforços de apostolado social ou obras concretas seriam canalizados através de Maria Ayuda. Significou que toda a comunidade dos Padres tomou consciência de que tínhamos o nosso próprio fruto que vinha do Padre Hernán Alessandri, um fruto concreto pelo qual tínhamos de nos preocupar, cuidar e fazer crescer. Finalmente, significou também lutar, juntamente com outros, em frentes duras como o mundo político, jurídico e administrativo, para tornar visível o que era e continua a ser muito invisível, a causa das crianças vulneradas.

Relativamente a esta última, como viveu a grande crise do Sename, quando o trabalho de organizações como a vossa começou a ser questionado?

A grande crise do Sename trouxe à tona situações muito difíceis, fruto da fraqueza e da pobreza material e humana de um sistema que era incapaz de lidar com as situações complexas dos Lares de crianças. Estamos a falar de abusos, mortes e situações que ocorreram principalmente nos Lares administrados directamente pelo Sename, devido à sua enorme dimensão. Depois, muitos começaram a fechar porque o risco de ter lares enormes era demasiado elevado. Percebeu-se que os grandes Lares com mais de cem crianças eram impossíveis de sustentar e foram criados lares mais familiares, mas infelizmente isso deixou muitas crianças fora de qualquer proteção. Estas crianças começaram a ser acolhidas por Instituições privadas como a nossa, o que significou outros problemas para nós, como a sobrelotação e o amontoamento.

A crise também afectou a percepção negativa do público sobre o que se passava nos Lares, muito influenciada pelos dramas específicos mostrados nos meios de comunicação social. Mas isso também nos levou, enquanto Conselho de Administração, a dar um passo de gigante, a criar uma “casa modelo” em María Ayuda, aquilo a que chamaríamos na nossa linguagem um “caso preclaro”, e a deixar de fazer mais do mesmo. Criar uma María Ayuda 2.0. Aumentar a qualidade dos cuidados, reduzir temporariamente o número de Lares e atingir o nível mais elevado possível na qualidade dos cuidados. Foi assim que nasceu a ideia de construir as duas primeiras residências, uma em Los Angeles e outra em La Florida, com o selo a que chamaríamos “Casa Alma”.

O que é a Casa Alma e o que significa para Maria Ayuda?

A Casa Alma é uma casa modelo, que inclui desde a arquitetura, ao modelo de atendimento e à mudança de perfil dos profissionais, e que coloca uma forte ênfase no terapêutico, não apenas no psico-social. Já temos dois Lares com o selo Casa Alma, um na cidade de Los Angeles e outro em La Florida, junto ao Santuário de Bellavista. São casas que querem incorporar a neurociência e a psiquiatria no seu modelo, sem deixar para trás o aspecto mais importante, que é a espiritualidade. Têm um ambiente agradável, familiar e amigável. Nestes locais, onde as crianças vivem por vezes durante muitos anos, o objectivo é permitir-lhes curar as suas feridas e, se possível, regressar aos seus vínculos familiares o mais rapidamente possível. A Casa Alma é uma resposta à crise do Sename em todo o Chile, porque esta realidade não pode ser ultrapassada apenas mudando o nome para “Mejor Niñez” (Melhor Infância). Um modelo residencial de excelência que queremos oferecer ao Chile, que é obviamente mais caro, mais pretensioso, em todos os sentidos, mas é a única forma de podermos dizer que estamos a cuidar bem das crianças dentro do drama que esta realidade implica.

Casa Alma

Casa Alma Santa María, residência para raparigas

Como é que a questão dos abusos na Igreja afectou Maria Ayuda? 

Os abusos afectaram enormemente a Igreja chilena em particular. E como María Ayuda é uma instituição católica, também nos afecta. Mas o nosso trabalho é precisamente lutar contra os abusos. Acolher as pessoas que foram abusadas nas suas famílias e ajudá-las a sarar as suas feridas. Por isso, no final, as pessoas sabem distinguir. Também nos obrigou a ser muito rigorosos nos nossos protocolos, em todos os sentidos. Não se pode contornar esses protocolos e tudo o que acontece com o pessoal ou entre as crianças, por mais insignificante que seja, tem de ser denunciado, o que antes podia passar despercebido. Tudo é muito mais rigoroso.

Que marcos destacaria destes 20 anos de trabalho?

Penso que há vários marcos. Em primeiro lugar, o crescimento territorial em direção às regiões. Passar de um Lar para dezanove num curto espaço de tempo é um crescimento expansivo muito forte, mas também se deve à crise dramática que existia no sistema. As casas Sename começaram a fechar, assim como muitas casas da Igreja em cada Diocese, e o sistema começou a ficar sem programas para acolher muitas crianças no Chile. Maria Ayuda teve de dar um salto de audácia e de fé na Providência, as vozes do tempo, para ir em apoio destas crianças. Nunca tinha visto tanta precariedade e pobreza como nos lares que tivemos de acolher. A segunda coisa é que, juntamente com este crescimento em cada região, começaram a formar-se núcleos de pessoas do Movimento de Schoenstatt e outras que se interessaram pela Obra e a fizeram sua. É o que chamamos hoje de Conselhos. Estes e os seus núcleos de voluntários começaram a tomar conta dos Lares e foram um grande apoio para cada Lar que se abria. Isto significou, ao mesmo tempo, uma maravilhosa rede de vínculos em torno da Obra e da pessoa do Padre Hernán Alessandri, uma rede que permanece no tempo.

Começámos a ser conhecidos pela opinião pública nos meios de comunicação social e, sem nos apercebermos, estávamos entre as três grandes Instituições do Chile que estão envolvidas na questão dos Lares residenciais para crianças. Isto também nos permitiu ter um conhecimento alargado da realidade e das deficiências do sistema em todo o Chile. Isto também levou a que mais pessoas se interessassem e apoiassem Maria Ayuda, quer financeiramente, tornando-se membros, quer participando nos eventos anuais em cada cidade.

Outro marco importante foi também a criação da Fundação Educacional Padre Hernán Alessandri, com a Escola José Kentenich em Puente Alto, também fundada pelo Padre Hernán. Esta foi uma conquista muito grande da direcção, porque também deu força e influência à escola, que hoje está a ter sucesso e bons resultados. É também a origem, a semente, de um foco de apostolado para o Movimento naquela comuna, com o “Projecto Arde”, nas imediações da escola onde recentemente se instalou um núcleo de pais e seminaristas, para além dos voluntários que ali vão viver durante algum tempo. Por outras palavras, houve ali uma extraordinária “resultante criadora”.

Primer Encuentro de Egresadas, junto a sus hijosen el Santuario de Bellavista.

Primeiro Encontro de Graduadas, juntamente com seus filhos, no Santuário de Bellavista

O que é que a figura do Padre Hernán Alessandri significa para María Ayuda?

O Padre Hernán Alessandri foi um sacerdote e um homem extraordinário. Era um homem excepcional, com mil qualidades e talentos. Mas infelizmente morreu muito cedo e passou dez anos prostrado, incomunicável e desligado do mundo, a viver na nossa casa de Bellavista. Era muito conhecido, mas só para os do seu tempo. Hoje, o Padre Hernán deixou uma marca enorme: é conhecido pelos seus livros e pelo seu testemunho. Portanto, ter um fundador, cujo processo de beatificação foi aberto este ano, dá-lhe uma força especial e um impacto extraordinário não só em Maria Ayuda, mas também em Schoenstatt e na Igreja chilena. Se é muito forte para o Hogar de Cristo ter o Padre Hurtado, também será muito forte para nós quando o Padre Hernán Alessandri for conhecido e reconhecido pela Igreja. A minha intenção durante todos estes anos foi trazer a figura do Padre Hernán para María Ayuda, falar dele, trazer o seu carisma e a sua mística e dar vida ao que ele queria em toda a Obra. É um grande desafio, se tivermos em conta que mais de 350 pessoas trabalham na nossa Instituição. É uma grande dádiva, um grande tesouro que temos de descobrir e promover.

O que poderia ser melhorado no apoio às crianças vulneráveis?

Hoje posso dizer-vos claramente que o Estado, por si só, não será capaz de resolver a questão das crianças vulneráveis. O Estado não fez deste problema nacional das crianças cujos direitos são violados nas suas próprias famílias uma prioridade nas suas políticas públicas. Não é uma das prioridades de nenhum governo. Portanto, o grande desafio está na sociedade civil, ou seja, em nós. Temos de sair à rua e encontrar uma solução para este drama, juntando esforços e unindo-nos para acabar com este flagelo. Mas o Estado tem de aceitar que é impossível financiar esta causa sem o seu apoio financeiro. É necessário um esforço conjunto.

Mas há também muitos nós críticos que ainda estão pendentes. O que é que vemos em Maria Ayuda? Que se isto não for abordado de todos os ângulos, da justiça, das políticas públicas, do Mejor Niñez, se não houver um trabalho conjunto e inter-sectorial, não conseguiremos resolver este problema.

Que desafios se colocam a María Ayuda no futuro?

Por um lado, o grande desafio é não perder a mística e o carisma que o Padre Hernán lhe deu. Aqui há uma espiritualidade e uma pedagogia que conhecemos em Schoenstatt, a Aliança de Amor em situações extremas. E, por outro lado, incorporar toda a tecnologia, a modernização das ciências sociais, a neurociência, a psiquiatria, porque os traumas com que cada criança chega são muito profundos. Por outras palavras, a “alma” de Maria Ayuda pode co-existir com os desafios técnicos actuais.

Como é que os schoenstatteanos se podem envolver mais com Maria Ayuda?

Hoje, Maria Ayuda tem uma imagem muito positiva em relação a Schoenstatt, o que é bom para ambos. Por isso é importante ter consciência de que Maria Ajuda é um braço social muito importante que nasce do Santuário, que nasce da Aliança de Amor, e é um fruto muito claro dela. Não é o único braço social, mas é o maior e mais visível. E creio que há uma responsabilidade das pessoas de Schoenstatt em apoiar económica e socialmente, em se tornarem membros, em participarem nos eventos, em serem voluntários, em procurarem alternativas para o apostolado nesta Obra que é de todos. Sonho, por exemplo, que amanhã tenhamos muitas famílias de acolhimento dentro das famílias do Movimento, porque já há alguns casos. Mas também acredito que tem de haver um envolvimento espiritual, ou seja, que muitos possam rezar por esta Obra, que a possam amar, que a possam aceitar como parte deste carisma tão rico e diversificado que nasce de cada Santuário.

Como é que vê a solidariedade com os mais pobres e carenciados em Schoenstatt?

A solidariedade em Schoenstatt deveria ter sinais muito mais visíveis e Maria Ayuda é uma oportunidade para isso. Há uma dívida pendente. Também temos que assumir que o nosso carisma mariano passa pela responsabilidade social, como pede hoje o Papa. Temos de assumir que a evangelização passa pela promoção humana dos mais fracos e dos mais pobres em qualquer frente que seja. O lema de Maria Ayuda é muito bonito: “Maria ajuda o Cristo que sofre hoje”. O Cristo que sofre hoje são as crianças, mas tem também muitos outros rostos: os doentes, os idosos prostrados, os toxico-dependentes, entre outros. Por isso, creio que o schoenstatteano tem que sair para a beira da estrada. E creio que a imagem mais bonita que o Padre Hernán deixou neste sentido para todos nós é a do Bom Samaritano, aquele que se aproxima dos desfavorecidos, que os ajuda e convida outros a ajudá-los. Temos grandes desafios neste domínio.

Em cada cidade onde Maria Ayuda está presente, há pelo menos uma expressão de solidariedade, mas ainda há muito a fazer. Penso que a espiritualidade deve estar ligada também à caridade e ao amor fraterno. Maria que está em Belém, que sofre a pobreza, Maria que vive com o seu filho Jesus na pobreza, Maria que exalta os humildes. Todo o aspecto mariano, mas também do ponto de vista da opção pelos mais fracos. Por isso, os nossos Santuários têm de ser lugares de promoção humana, onde as pessoas não vão apenas para rezar, mas também, como fez o Padre Hernán Alessandri em 1983, quando fundou María Ayuda, quando deu comida a milhares de pessoas que vinham ao Santuário pedir ajuda para sobreviver.

Colaboradores de María Ayuda en el Santuario de Bellavista.

Colaboradores de Maria Ayuda no Santuário de Bellavista

Fonte: Revista Vínculo, Novembro de 2023

Original: castelhano (6/11/2023). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal

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