Posted On 2018-07-01 In Coluna - Carlos Barrio y Lipperheide

A responsabilidade das empresas pela habitação dos seus empregados

Entrevista de Carlos Barrio y Lipperheide, CIEES Argentina •

1.000 Casas em 1.000 dias, enraizamento e estabilidade familiar e melhoria no rendimento académico dos filhos foram algumas das consequências de um programa de habitação implementado por uma empresa argentina. Augusto Garaventa, empresário schoenstatteano conta-nos nesta entrevista.—

“O sentir-se acolhido num lugar é, em última análise, símbolo de estar acolhido em Deus”, diz o Pe. Kentenich. [i] No mundo empresarial contemporâneo foi-se desenvolvendo, cada vez mais, a consciência das obrigações sociais que têm as empresas. Deste modo, surgiu o conceito de Responsabilidade Social Empresarial, com compromissos muito concretos assumidos pelas empresas com o meio ambiente, os clientes, fornecedores, empregados e grupos de investidores com os quais interage. A Encíclica do Papa Francisco Laudato Si’ é, precisamente, um exemplo concreto desta maior exigência pelo cuidado da casa comum em que vivemos. E, dentro deste quadro de responsabilidade poderíamos perguntar-nos se, às empresas também lhes cabe uma certa responsabilidade em relação ao modo como vivem os seus empregados, às condições sociais em que vivem fora do âmbito da empresa?

Por acaso, alguém pode negar que, o modo como vivem os trabalhadores é o reflexo do nível de vencimentos que recebem e da riqueza de um país?

Podem as empresas acolher-se, estritamente, ao mercado e esquecer-se do ser humano?

Se bem que, considero que esta responsabilidade é inevitável, torna-se muito complexo estabelecer um limite preciso e unívoco em relação à extensão da mesma. Cada empresa é um mundo.

 

Até onde vai a responsabilidade de uma empresa?

Uma perspectiva valiosa é nos dada por José Kentenich quando nos diz que “…o que podemos fazer é dar a tónica própria de uma família a todas as nossas relações, quer de trabalho quer, pessoais”. [ii]  Deste modo, indica-nos o caminho em como estender ao mundo do trabalho o que é próprio e natural do Homem que é a família, isto é, o lugar onde nasce e se desenvolve e se vai forjando o que chamamos lar. Se as empresas, realmente, se preocupassem em seguir este princípio, provavelmente, haveria muitas iniciativas tendentes a reflectir o âmbito familiar nas empresas. Mas, até onde chega a responsabilidade de uma empresa quando existem situações muito concretas de forte indigência social dos seus empregados? Pode a sua responsabilidade ser circunscrita, apenas, ao que acontece dentro da empresa? Estas perguntas têm muitas respostas possíveis mas, em nenhum caso, a empresa pode ser indiferente a estas realidades.

Kentenich foi testemunha, há já muitos anos atrás, em 1930, de situações de pobreza extrema dos trabalhadores na Alemanha, as que, salvaguardando as devidas distâncias, de se tratar de épocas e de idiossincrasias diferentes, nalgum ponto são similares às que se vivem em toda a América Latina.

Perante a falta de habitação ele perguntava-se: “Pode prosperar ali uma família moralmente boa, quando toda ela tem que se apertar em duas e, muitas vezes, numa só divisão? [iii] O capitalismo liberal exagerou a importância das leis de mercado e, em grande medida, entendeu que as responsabilidades das empresas se devem circunscrever ao cumprimento das leis que regem a sua actividade em cada lugar onde se implanta. Este aspecto, sem dúvida, é o exigível do ponto de vista legal mas, de uma perspectiva empresarial cristã ficaríamos aquém.

A resposta da empresa Ledesma face ao deficit habitacional de uma parte dos seus empregados

Quero trazer à colação o caso muito concreto da empresa argentina Ledesma que deu uma resposta, altamente, comprometida às necessidades habitacionais dos seus empregados.

Há uns dias atrás, tive o prazer de entrevistar Augusto Garaventa, Director de Talento e Desenvolvimento Organizativo da citada empresa e schoenstatteano comprometido que, no Congresso CIEES da Costa Rica em 2013 fez uma sucinta apresentação das acções que começavam a ser levadas avante pela Ledesma, para um grupo de trabalhadores e das suas famílias, que tinham um sério deficit habitacional na província de Jujuy. A seguir, a reportagem.

Augusto, como surgiu o projecto e como o viveste?

O Programa Acesso a Casa Própria tem a sua origem em 2011. O deficit habitacional é uma das principais problemáticas sociais que afectam a comunidade na qual está inserido o nosso complexo agroindustrial na província de Jujuy. Nessa altura, era perceptível, através dos pedidos de ajuda de muitos dos nossos trabalhadores que, apesar de auferirem bons salários para a zona e a actividade que realizam, punham à nossa consideração as suas dificuldades para adquirirem a sua própria casa ou arrendarem uma digna.

Foi então que, os Recursos Humanos, com o acompanhamento da área de Assuntos Institucionais que, coordena as relações com a comunidade, nos propusemos oferecer uma solução concreta ao problema habitacional da nossa gente. A Direcção da companhia aprovou o projecto e decidiu dar um terreno de 50 hectares, investindo à volta de 20 milhões de dólares para a construção de um bairro novo na localidade de Calilegua.

O seguinte passo foi conhecer, com exactidão, a situação habitacional do pessoal dentro do convénio da Ledesma e, para isso, realizámos um levantamento que nos permitiu identificar que, eram um pouco mais de mil pessoas e suas famílias que tinham algum tipo de deficit nesta matéria.

A seguir, começámos a avaliar alternativas de construção. Detetámos que, no Uruguai existia uma experiência de sucesso em habitações rurais mas, a uma escala muito menor. Pusemo-nos em contacto com o arquiteto Juan Estrada, um impulsionador deste tipo de iniciativas e com uma vocação para proporcionar habitações a quem delas necessita.

Juan aceitou, com muito entusiasmo, juntar-se ao programa e propôs um projecto de unidades de 65 metros quadrados num lote de 250 metros quadrados, com três quartos, uma sala com zona de jantar e uma casa de banho. Também desenhou casas com quatro quartos para famílias mais numerosas.

Definiu-se um modelo com escala em série, no qual o critério para a construção foi que a casa pudesse ser habitada quando se entregasse a chave. O método baseava-se na eficácia no uso dos materiais sem gerarmos desperdícios. As casas foram sendo construídas com materiais tradicionais e eram construídas com um processo de montagem, como um Lego. Foi chave a eficiência produtiva porque não tínhamos financiamento, nem privado, nem público.

Para a construção das unidades contratámos uma empresa local através de um concurso. Fizemos o mesmo com outros fornecedores, eram todos da zona. Calculamos que esta iniciativa criou 300 postos de trabalho.

Além das habitações, desenvolvemos a infraestrutura do bairro com a equipa de Engenharia de Campo da companhia. Abrimos ruas, valetas para escoamento de águas, iluminação pública, redes de água e de energia eléctrica, esgotos, espaços comuns e a ligação a uma rede de gás natural.

O outro desafio chave do Programa era o social. Para o gerir,de modo profissional, criámos uma equipa de seis trabalhadores sociais. A sua primeira missão foi fazer um levantamento da situação habitacional de todos os trabalhadores que se inscreveram no Programa. Fizeram à volta de 5.000 visitas domiciliares e com a informação que recolheram ficou estabelecido quem seriam as 1.000 pessoas a quem seriam entregues as habitações e qual a ordem de prioridade em que isso seria feito.

Também acompanharam os postulantes e, posteriormente, os adjudicatários durante todo o processo, fiscalizando-os e orientando-os.

Por esta abordagem social recebemos um prémio na Cimeira Mundial do Trabalho Social que foi celebrada no Equador em 2015.

 

Entrega da habitação N° 1000 pelo Presidente Mauricio Macri

– Que meritório. Qual era a filosofia para proporcionar as casas aos trabalhadores?

Desde um princípio, a nossa proposta contemplava que os trabalhadores deviam comprar as casas, não lhas oferecíamos. É gente trabalhadora que tem que ficar orgulhosa por poder ter a sua casa com o seu esforço, para a sua família. Não interessa a dádiva, o presente.

– Tiveram presente que o pagamento das casas podia exceder a capacidade económico-financeira dos trabalhadores?

– Sem dúvida. Sabíamos que as casas tinham que ser acessíveis. Por isso, elaborámos um modelo financeiro que contemplava a capacidade de pagamento dos trabalhadores.

Os adjudicatários pagam 150 quotas mensais. O valor da quota é o equivalente a 40 horas de trabalho, o que representa 20% do salário do trabalhador. A quota só é aumentada se é aumentado o salário dos trabalhadores.

Se aumenta o salário, aumenta a quota e, se não aumenta, não aumenta a quota.

Duas pessoas com salário diferente compram a casa pelo mesmo valor. Um paga-a com quotas mais altas e a outra com quotas mais baixas. Se com as 150 quotas não acaba de a pagar, perdoa-se-lhe o saldo. Todas as casas têm hipotecas e têm escritura.

Em Fevereiro de 2014 inaugurámos o bairro, que baptizámos “Papa Francisco”, com a entrega das primeiras 140 casas. E, como prometemos, acabámos de construir as 1.000 casas em 1.000 dias.

A seguir, fizemos mais 100 casas, na mesma modalidade, noutra localidade jujeña chamada El Talar, onde temos uma plantação de cana-de-açúcar.

– Qual foi a reacção das pessoas?

A verdade é que foi muito variada. Na maior parte dos casos foi de gratidão, pela possibilidade que tiveram de cumprir um sonho de terem casa própria e por darem melhor qualidade de vida às suas famílias.

Há um exemplo do impacto positivo que, produziu para estas pessoas, o terem uma casa digna: os filhos de uma das famílias adjudicatárias que, tinham problemas de rendimento académico na escola, desde que vivem num novo lar mostraram uma melhoria assombrosa.

Mas também é verdade que muitos trabalhadores estão convencidos que a empresa é obrigada a dar-lhes casa, veem-no como um acto de justiça e, não de ajuda ou colaboração. É duro mas, é uma realidade.

Nós não descriminámos ninguém por causa do ativismo sindical. A alguns membros dos sindicatos muito conflituosos atribuímos-lhes casa porque estavam reunidas as condições requeridas, sabendo que, no dia-a-dia se iriam voltar contra nós. No ano passado tivemos uma greve de mais de vinte dias e, uns quantos trabalhadores açucareiros que aderiram à paragem, têm casas no bairro.

 

ledesma vivienda

– Como viu isto a Direcção?

– Viu-o como uma oportunidade de melhorar a realidade dos trabalhadores. Comprometeram-se muito com o projecto e participaram em todos os actos de entrega das casas. Ledesma já tinha implementado várias iniciativas deste género ao longo da sua história. A Direcção fê-lo por convicção e por um compromisso histórico da companhia com os seus trabalhadores.

-Mudou o ambiente social nas pessoas?

– Vimos um compromisso forte das pessoas e acho que o ambiente laboral melhorou

– Pensam que é um modelo imitável por outras empresas?

– Acho que é bom poder fazê-lo. É recomendável. Haveria que o adaptar para o caso de ser em menor escala.

Acho que o Estado tem um papel importante e deveria dar facilidades às empresas para que avancem com este género de iniciativas. Nós tivemos que pagar impostos sobre o lucro e IVA, apesar de que se tratava de habitações sociais. Seria razoável que o Estado tivesse alguma consideração nestes aspectos.

Agradeço ao Augusto a oportunidade que me ofereceu de lhe fazer esta entrevista e de poder documentar este empreendimento empresarial, tão louvável e imitável, por outras empresas.

A iniciativa de Ledesma levada a cabo com a participação chave do Augusto Garaventa é uma demonstração de que “não há questões esgotadas mas, Homens esgotados nas questões”, como dizia o médico Prémio Nobel espanhol Santiago Ramón y Cajal. Muitas vezes assumimos que há mudanças que não se podem fazer pela dificuldade que têm, como pode ser o proporcionar uma habitação a um trabalhador de uma empresa. Mas, a tenacidade, o talento e a perseverança podem superar todas as adversidades e tornar realidade o que parecia impossível.

 

Um assunto para apresentar na reunião do CIEES em 2019 no Paraguai

A Comunidade Internacional de Empresários e Executivos Schoenstatteanos (CIEES) vai reunir-se, de novo, no próximo ano, desta vez no Paraguai, como é hábito de dois em dois anos em diferentes países anfitriões.

Considero que seria uma excelente oportunidade para apresentar um assunto como o que é tratado nesta entrevista ou de similares características para, deste modo, se poder reflectir na prática, nas empresas que querem ser kentenichianas, o ideal de comunidade nova à qual nos incentivava José Kentenich, na qual, quem a integra “…se esforçam por uma profunda união interior das pessoas, por um estar, interiormente, um no outro e para o outro, por uma consciência de responsabilidade, de um pelo outro, responsabilidade ancorada em Deus, sempre activa, que impulsiona o indivíduo e a comunidade no caminho do apostolado universal e aí os torna fecundos” [iv].

Contacto com o autor: Carlos E. Barrio y Lipperheide, carlosebarrio@gmail.com
[i] José Kentenich. “El pensamiento social del p. José Kentenich”. Ed. Nueva Patris (2010), pág.70.
[ii] José Kentenich. “Desafío Social”. Editorial Schoenstatt (1996), pág. 309. José Kentenich foi o fundador do Movimento Apostólico de Schoenstatt.
[iii] José Kentenich. “Desafío Social”. Editorial Schoenstatt (1996), pág. 242.
[iv] José Kentenich. “Desafío Social”. Editorial Schoenstatt (1996), pág. 178.

Original: espanhol (24/6/2018). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal

 

 

 

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