Posted On 2020-07-15 In José Kentenich

O Pai-Fundador e a Família de Schoenstatt – Refexões sobre uma crise

Por Rosario Zamora – Miguel González, Curso 48, União das Famílias da Região Chile-Bolívia •

Já passou mais de uma semana desde que as graves acusações contra o Padre José Kentenich foram divulgadas pelo jornal alemão Tagespost e pela página do Sandro Magister do Vaticano.—

Antes destes acontecimentos, acreditávamos que vivíamos numa Família unida por fortes alicerces, fundada sobre uma compreensão comum da história e das bases do Movimento. Embora houvesse milhares de nós espalhados pelo mundo, podíamos chamar-nos a nós próprios Família de Schoenstatt, porque partilhávamos a unidade num “mito comum“.

Segundo o autor Yuval Noah Harari no seu livro “De Animais a Deuses“, a investigação sociológica mostrou que o tamanho máximo “natural” de um grupo unido de pessoas é de cerca de 150 indivíduos. A maioria das pessoas não pode conhecer intimamente ou comunicar eficazmente com mais de 150 seres humanos. Por outras palavras, há limites à dimensão dos grupos de pessoas que podem ser formados e mantidos juntos, pois precisam de se conhecer intimamente uns aos outros. Então como conseguimos formar estados, religiões ou sociedades comerciais que reúnem muito mais indivíduos? O autor responde: “Um grande número de estranhos pode cooperar com sucesso se acreditarem em mitos comuns. Qualquer cooperação humana em grande escala – seja ela um estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga, ou uma tribo arcaica – é construída sobre mitos comuns que existem apenas na imaginação colectiva das pessoas.

Após as primeiras informações sobre a investigação de Alexandra von Teuffenbach, uma parte do nosso “mito” parece ter-se desmoronado, dada a existência de elementos até então desconhecidos para muitos membros da nossa Comunidade. Como resultado, a unidade já não é tão evidente.

As diferentes posições

A partir da nova informação, surgiram diferentes reacções no seio da Família de Schoenstatt. Duas posições radicalmente diferentes foram rapidamente delineadas e consolidadas. Uma delas pede perdão por ter escondido informação relevante e adopta uma posição mais crítica em relação ao Fundador, enquanto a outra sustenta que a omissão de informação não equivale a uma mentira e, portanto, não é moralmente reprovável e justifica todas as palavras e acções do Pe Kentenich.

Esta dualidade de interpretações foi replicada com todo o tipo de nuances na União das Famílias, da qual fazemos parte, acompanhada da dor profunda daqueles que viveram toda uma vida no Movimento e que vêem em perigo um pilar fundamental da sua existência.

Face a este panorama sombrio de divisão, que poderá tornar-se mais radical nos próximos meses e anos, dado o rigor necessário com o qual a Comissão de historiadores que acaba de ser anunciada terá de trabalhar, gostaríamos de propor algumas reflexões sobre os elementos que conhecemos hoje, uma vez que compreendemos que esta é a primeira parte de um longo caminho para conhecer e desconstruir a nossa história[1].

A Aliança de Amor com o Pai

No decurso desta semana difícil, alguns aspectos até agora desconhecidos foram esclarecidos. Respeitando a presunção de inocência, assumimos que o Pe. Kentenich agiu sempre de boa fé e que as explicações que oferece no texto “Apologia pro vita mea” correspondem à verdade. Segundo este texto recentemente conhecido, apesar de ter sido escrito na década de 1960, o Pe. Kentenich teria tentado curar uma Irmã de Maria que sofria de uma desordem obsessiva que a impedia de aceitar o seu próprio corpo através de uma pergunta adicional acrescentada ao “A Aliança de Amor com o Pai” que as Irmãs de Maria realizam, que aludiria à intimidade corporal.

O Fundador, então, de acordo com a sua própria interpretação, teria agido de uma forma moralmente correcta, dado o seu estatuto de pai e educador. Aqueles que questionam este acto, segundo o texto de Patricio Ventura (ES), não compreenderiam a transferência orgânica – vendo a imagem de Deus no Fundador – e recaíriam sobre a mentalidade mecanicista.

A explicação acima, porém, é extremamente problemática. Em primeiro lugar, é um facto, desde que ela denunciou o Fundador numa carta ao Vaticano, que a Irmã não só não, se sentiu libertada da sua obsessão, como também se sentiu profundamente violada, ao ponto de acusar o Fundador de abusos. A pessoa da Irmã, os seus sentimentos e o seu sofrimento não são tidos em conta na defesa que o Fundador faz de si próprio, nem parece ser relevante para o número crescente de defensores dos seus actos.

Isto pode ser compreendido no seu contexto histórico, uma vez que nesses anos prevaleceu uma compreensão do abuso baseada numa visão da violência e dos danos do ponto de vista da força  e da dor físicas [2], mas visto dos nossos dias parece grave não se ter notado a subjectividade, em que a intimidade sexual da vítima é transgredida [3].

Em segundo lugar, tendo em conta os paradigmas de abuso que temos hoje, é chocante que o Fundador não tenha mostrado o menor sinal de arrependimento perante um erro tão grave. Pois embora a atitude de Kentenich seja compreensível, não é moralmente justificável. Assim, hoje em dia, a grande maioria das pessoas pensa que ninguém está autorizado a violar a privacidade de outro. Nem o Pai Fundador, mesmo que ele tenha agido com a melhor das intenções.

O Rosto de Deus

Isto leva-nos a uma segunda dimensão do problema: o exercício da paternidade sacerdotal em relação às Irmãs de Maria. Em numerosos textos, o Fundador afirma o seu papel como educador das Irmãs. O fundamento último deste papel tem a ver com a “transferência orgânica“: o Fundador seria para as irmãs um transparente de Deus . Este princípio, no entanto, tem as suas limitações. Jesus diz a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai”. Como cristãos e como schoenstatteanos, aspiramos a que esta frase se torne uma realidade em nós. Contudo, só Cristo, a Palavra de Deus feita carne, pode dizer esta frase com toda a propriedade. Há uma distância infinita entre Deus, o Pai, e as suas criaturas. Certamente que também nós podemos ser portadores do amor e misericórdia de Deus, mas nunca de uma forma perfeita ou total, mas apenas na medida em que a condição humana o permita. Esta limitação aplica-se também a todas as pessoas, mesmo que sejam santos ou fundadores.

Qual é a imagem da mulher que tem o Fundador?

A isto temos de acrescentar outra dimensão especialmente problemática da questão. No texto Apologia pro vita mea, encontramos uma passagem que reflecte um ponto muito problemático do pensamento do Fundador, que é especialmente relevante para o problema em questão: “Numa família feminina presente em todas as partes do mundo e responsável por todas as actividades apostólicas, [a presença do pai] assegura uma amplitude e generosidade de espírito que a estreiteza inata das mulheres não é normalmente capaz de atingir[4] (página 78, a ênfase é nossa). Será necessário mostrar que este juízo está profundamente errado e que condiciona, sem dúvida, a forma como o papel paterno é exercido com as mulheres em geral e as Irmãs de Maria em particular? Visto dos nossos paradigmas modernos, entendemos este pensamento como um reflexo fiel de um machismo histórico que milhares de mulheres no mundo de hoje querem fortemente rejeitar.

Como resultado, os antecedentes acima mencionados dão-nos conta de dois erros graves cometidos pelo Fundador de Schoenstatt. Em primeiro lugar, um grave erro de julgamento relativamente aos limites da paternidade sacerdotal, que poderia mesmo ser considerado um abuso de consciência, uma falha muito difícil de perseguir, mesmo sob o actual Direito Canónico; em segundo lugar, um grave erro conceptual relativamente à inteligência feminina. O que teria pensado o Fundador das suas compatriotas Hanna Arendt, Edith Stein e Angela Merkel?

Em jeito de conclusão

Voltemos agora ao diagnóstico inicial, ou seja, os dois diagnósticos divergentes sobre as acusações que existem no seio da Família de Schoenstatt. A justificação incondicional da atitude do Pe. Kentenich na “Aliança de Amor com o Pai” que hoje está em causa, parece reflectir a incapacidade de ver o Fundador não só na sua grandeza, mas também na sua miséria e no seu erro; por outras palavras, de o ver na sua humanidade. Atribuir ao Fundador um carácter infalível, contra todas as provas, aproxima-se perigosamente do culto da personalidade e, num caso extremo, da idolatria. A posição moderada, por outro lado, permite-nos encontrar e entrar num diálogo adulto com José Kentenich, um homem de carne e osso. Convidamos todos os membros do Movimento de Schoenstatt a reflectir sobre como construir uma relação saudável com o Pai-Fundador da Família de Schoenstatt.

 

[1] Desfazer analiticamente algo para lhe dar uma nova estrutura, RAE
[2] J. Murillo, “Abuso sexual, de conciencia y de poder: hacia una nueva definición”, Estudios eclesiásticos 95 (2020), 415-440.
[3] Na teoria criminal actual, os crimes contra a intimidade sexual são aqueles que afectam a dignidade do indivíduo, que sofre uma intervenção traumática na sua intimidade por parte de um terceiro.
[4] No original alemão: , “Es gewährleistet bei einer in allen Weltteilen vertretenen weiblichen Familie, die alle apostolischen Arbeitsgebiete betreut, eine Weite und Großzügigkeit, zu der weibliche angeborene Enge gewöhnlich nicht fähig ist.“

 

Original: espanhol (12/7/2020). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal

 

tteilen vertretenen weiblichen Familie, die alle apostolischen Arbeitsgebiete betreut, eine Weite und Großzügigkeit, zu der weibliche angeborene Enge gewöhnlich nicht fähig ist.“

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1 Responses

  1. Lena Castro Valente says:

    Segundo o dicionário Priberam da Língua portuguesa, MITO é definido como:

    1. Personagem, facto ou particularidade que, não tendo sido real, simboliza não obstante uma generalidade que se deve admitir.

    2. Coisa ou pessoa que não existe, mas que se supõe real.

    3. Coisa só possível por hipótese; quimera.

    Por isso, creio que associar o Fundador de Schoenstatt a MITO para justificar a realidade dos milhares e milhares de schoenstatteanos espalhados pelo mundo inteiro se sentirem FAMÍLIA, se manterem unidos e partilharem a mesma Pátria espiritual é um erro de percepção tremendo. O artigo quer- a meu ver – revestir-se de uma roupagem académica e científica que não consegue nem tem o menor cabimento e o torna numa espécie de “venda de banha da cobra”…. O Fundador de Schoenstatt existiu, era real. Se levarmos a sério esse raciocínio então Jesus também será um Mito para os autores, visto que, desde há dois mil anos congrega milhões e milhões de pessoas de continentes e países diferentes!!!!!!!!!
    Para além dos mitos “para reunir mais de 150 pessoas” que tal pensar em VALORES, PRINCÍPIOS, COSMOVISÃO…
    O Fundador de Schoenstatt, tal como o conhecemos até aqui, era possuidor destes Valores, princípios, cosmovisão.
    Os cidadãos de um país (e são milhões) reconhecem-se unidos e filhos de uma Pátria pelo HINO NACIONAL, pela BANDEIRA – é vê-los a cantarem o Hino nos estádios de futebol… A isto chama-se símbolos…
    O artigo só tem valor por expressar a opinião de duas pessoas que, têm todo o direito a fazê-lo.

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