Gonzalo Génova, Madrid, Espanha •
O significado que normalmente damos à Utopia é ambivalente. Por um lado, significa um projecto desejável da sociedade (“uma nova ordem social”), mesmo que seja difícil ou impossível de alcançar. Por outro lado, as sociedades que fingiram ter alcançado a Utopia têm características que as tornam francamente muito indesejáveis, especialmente devido à sua forte tendência para conduzirem ao totalitarismo. Assim, hoje, quando falamos de utopia, a sensação que ela evoca é bastante agridoce: ou desconfiança de um projecto totalitário desumanizador, ou frustração face a um projecto inatingível, para o qual não vale a pena o esforço. —
Josef Kentenich, Textos sobre o 20 de Janeiro
Utopia é precisamente o título da sua obra mais famosa, publicada em 1516, onde descreve uma ilha imaginária com um sistema político, social e jurídico perfeito, onde reina a paz e a justiça. More cunhou este termo grego para a ilha – que significa literalmente u-topos, em lugar nenhum – para significar uma sociedade ideal, e portanto inexistente. O trabalho é inspirado pela República de Platão, que também descreve uma sociedade idealizada. Com o passar do tempo, o termo tornou-se popular como sinónimo de perfeição ou objectivo inatingível, embora More não lhe atribua, explicitamente, essa nuance na sua obra.
Projectos que terminam, e projectos que nunca terminam
Nos projectos humanos, que são definidos, antes de mais, pela sua finalidade ou objectivo, podemos fazer uma distinção entre aqueles que têm uma finalidade específica e fechada e aqueles cuja finalidade permanece sempre aberta. No primeiro é possível verificar se o seu objectivo foi cumprido, se o projecto se concretizou. Poderíamos dizer que o paradigma do projecto fechado é a construção de uma máquina ou de um dispositivo tecnológico. Uma parte essencial de qualquer projecto de engenharia consiste em poder realizar um controlo de qualidade, ou seja, verificar se o dispositivo corresponde ao que se esperava dele, se satisfaz os objectivos que foram definidos no início do projecto. Quando o projecto estiver concluído, resta a tarefa de o manter no seu lugar para que não se deteriore: a estrada é mantida em bom estado, a central eléctrica continua a produzir energia, a mesa não coxeia. Mas há outros tipos de projectos que não têm, a priori, um objectivo perfeitamente definido e fechado. Isto é, contudo, até certo ponto paradoxal, porque se não posso verificar se os objectivos do projecto foram alcançados, em que sentido posso dizer que existe um “projecto”? Para onde vou, se não tenho forma de verificar que já cheguei?
Penso que vale a pena examinar esta dificuldade mais de perto, porque os “projectos” mais importantes com que estamos a lidar são precisamente deste tipo, abertos. Para ver a diferença mais claramente, pensemos num projecto educativo de instrução em determinadas competências: uma vez que os objectivos do projecto são claros, é possível avaliar formalmente se os alunos os atingiram ou não, se já são “competentes”: aprenderam a conduzir um carro, a resolver uma determinada categoria de problemas matemáticos, a realizar este exercício gímnico. Por outro lado, num projecto educativo abrangente – que nunca é mera instrução – não é possível dizer que o objectivo tenha sido alcançado, estamos sempre abertos a um maior crescimento.
O objectivo dos projectos pessoais e sociais
Algo completamente análogo ocorre com um projecto pessoal, familiar, ou comunitário: o Ideal Pessoal de Schoenstatt, o Ideal de Casal, ou o Ideal Comunitário não são objectivos atingíveis nesta vida, no tempo da história. E isto pode ajudar-nos a compreender que o ideal de uma sociedade perfeita, de uma “nova ordem social” – que incluirá necessariamente a perspectiva ecológica cristã – também não será alcançável na história. Mas então, não é frustrante propor um objectivo que se sabe que nunca será alcançado? Para quê fazer um esforço?
Vejamos isto de outra forma.
Se considerarmos a própria sociedade, o conjunto de estruturas sociais, como um artefacto projectado, concebido e construído por nós, com objectivos verificáveis, como se fosse uma máquina (engenharia social), o que acontecerá quando tivermos alcançado esses objectivos? Parece claro: da mesma forma que acontece com os artefactos mecânicos, será necessário manter um rigoroso controlo de qualidade para que a sociedade se mantenha dentro dos limites do que é projectado. Será o fim da história, o congelamento do tempo, a eliminação de toda a criatividade humana, a morte do espírito. Vimo-lo em tantas obras de ficção já clássicas que mostram a distopia (um termo inventado precisamente como antónimo de utopia): O admirável mundo novo de Aldous Huxley; 1984 de George Orwell; Fahrenheit 451 de Ray Bradbury.
Por outras palavras: a tentativa de alcançar a utopia social dentro da história não pode evitar a armadilha da supressão totalitária da liberdade. Atingir a utopia é cair em distopia. A inatingibilidade do objectivo, portanto, não é algo negativo, mas algo positivo, porque deixa a porta aberta para a melhoria contínua, como fruto da livre iniciativa humana, rumo a um objectivo que é sempre “meta-“, “para mais longe”.
A utopia é portanto indesejável: ou porque é inalcançável e frustrante, ou porque é alcançável e totalitária. Mas, como uma inspiração, a utopia é de facto desejável.
Por outras palavras, mesmo que o objectivo seja inalcançável, a utopia marca a direcção em que se deve caminhar. Podemos melhorar, podemos crescer, podemos aproximar-nos do objectivo, embora este nunca seja completamente “nosso”: a plenitude a que somos chamados permanece sempre aberta, como o horizonte para o qual caminhamos, sempre, sem nunca o alcançarmos. A melhoria é real, embora nunca completa e perfeita, é por isso que continuamos a caminhar. A sociedade perfeita, a “nova ordem social”, não é alcançável neste mundo, dentro da história. Está fora do tempo, está “com Deus” (apud Deum).
Original: espanhol (28/6/2020). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal