Posted On 2019-12-02 In Artigos de Opinião, Vozes do Tempo

Maria, a grande revolucionária

Pe. Juan Pablo Revegno •

“Maria, a grande revolucionária. Até o Pai ousa dizer que nos deixámos vencer pelo bolchevismo, porque eles pegaram na bandeira dos pequenos, dos pobres e marginalizados, uma bandeira que, teríamos que ser nós a hastear, não pela marginalização e força, mas pela valorização que nos faz iguais em direitos e dignidade. Esta crise é uma nova oportunidade para que o Magnificat não seja património de novos totalitarismos ou populismos, mas de um cristianismo comprometido”. No meio da crise social no Chile, o Padre Juan Pablo Revegno com estas palavras desafia todos os schoenstatteanos a fazerem, verdadeiramente sua, a mensagem do Magnificat.—

Com alegria nos reunimos num tempo de mudanças vertiginosas e tensas, que nos tiraram do nosso conforto, da nossa segurança, das nossas coisas. A Família de Água Santa convidou-nos a sair dessa zona conhecida, fazendo-nos participar na sua consciência fundacional que se reflecte no seu Lema Jubilar, na sua história, na sua identidade tão forte e firme e, ao mesmo tempo, dócil e aberta a renovar-se e a reinventar-se sempre. Mas nunca teríamos pensado que esta celebração se faria no meio de uma profunda e intensa crise nacional, incerta e esperançosa, violenta e parturiente, uma possibilidade inevitável para nos refundarmos, para nos reconstruirmos, para nos reinventarmos, para uma nova cruzada de vínculos que reparem e restaurem uma ordem social ferida.

Feridos por esta falta de encontro, de sair de nós próprios para entrar em harmonia e sinergia com os outros. Feridos por necessidades, desejos e pedidos sociais invisíveis. Feridos por polarizações políticas endémicas, por fissuras e fricções sociais que não tinham cicatrizado completamente. Feridos pela violência e intransigência que desconhecíamos na sua virulência e capacidade destrutiva.

E, no entanto, aqui estamos, movidos pela certeza da intervenção e orientação do Deus da história. Porque Deus  faz-Se presente na história, Ele não nos deixa sozinhos nem nos movimenta como um titeriteiro. O Deus de Jesus em quem cremos, amou-nos e continuará a amar-nos sempre , e os nossos pecados não são obstáculos à Sua intervenção, antes pelo contrário, são espaços privilegiados para que se manifeste a gratuidade da Sua misericórdia, mas também a firmeza da Sua condução.

Este Santuário também surgiu num tempo de profundas mudanças a nível da Igreja e da sociedade: o fim do CV II, a irrupção do pensamento social cristão comprometido, o advento dos ares revolucionários, de Paris a Havana, no meio da guerra fria, dos neo-imperialismos e dos poderes totalitários. Um tempo de grande efervescência social e grandes transformações a nível mundial.

Nesse contexto, o Santuário emergiu como um laboratório para a formação do  Homem Novo e da Nova Comunidade, para responder, a partir dessa experiência, ao desafio social que vivemos como Igreja e nação.

Hoje, 50 anos depois, volta a erguer-se como a oficina de formação e envio. Poderíamos dizer que os acontecimentos que estamos a viver colocam-nos perante o desafio de uma segunda conversão: já não se trata do baptismo primeiro, quando a Mãe de Deus nos deu à luz a partir do Santuário há 50 anos, agora, na linguagem do Nosso Pai , trata-se dessa segunda conversão, desde as feridas e da consciência da impotência e pequenez, do pecado e também das faltas pessoais e comunitárias à missão confiada.

Talvez por isso Deus tenha permitido que a nossa celebração, no meio da crise que estamos a viver, não tenha o triunfalismo dos sucessos e dos resultados, mas o humilde reconhecimento de que tudo foi graça e gratuidade, que fomos instrumentos, muitas vezes fracos, que a Mãe de Deus foi tremendamente generosa e Se manifestou fecunda nestes 50 anos de vida, em obras, em Alianças e projectos.

Mas voltemos ao sentido desta celebração: uma segunda conversão, que nos conduza à necessária conversão pessoal e comunitária, com consequências sociais, que o tempo e a crise que vivemos exigem. Como podemos entendê-la?

A nossa escola será sempre Maria: Maria que, a partir do Santuário, quer continuar a configurar-nos com o Seu Filho Jesus.

O Evangelho de hoje nos dá três pistas tão actuais, para assumirmos com esperança o processo que vivemos como país. Deixemo-nos surpreender por esta Leitura da Visitação que tantas vezes foi escutada:

Maria pôs-se a caminho.

“Maria pôs-Se a caminho…”Pensar em fazer-se à estrada no tempo da Mater nada tem a ver com o romantismo de uma caminhada, o desafio de um trekking ou o exotismo de uma viagem ao Oriente. É percorrer vários quilómetros entre pedras e solidões, protegidos pela sombra de uma caravana e expostos à fadiga de uma caminhada de, pelo menos, 130 quilómetros.

Pôr-se a caminho é sair de nós próprios, do estado de ensimesmamento, indiferença, ocupação, evasão, inércia, importância, auto-referência, indolência, estreiteza, conforto, preguiça, acomodação, melancolia, hiperconexão… para sair, para olhar e entrar numa relação com o que está para além do nosso nariz. A única possibilidade de conhecer e reconhecer o que me está a acontecer, e àqueles que me rodeiam, é sair de nós próprios: as minhas ideias, os meus esquemas, as minhas exigências, as minhas obsessões, as minhas defesas, os meus medos, as minhas inseguranças, a minha rigidez…

Esta crise exige que saiamos de nós próprios e, embora nos tenha surpreendido na sua magnitude, profundidade e também na sua violência irracional, não podemos continuar na mesma coisa de sempre nem podemos continuar a ser como sempre.

Maria saiu, não ficou meditabunda nem temerosa, saiu ao encontro da realidade, levando como única certeza o Menino que crescia no Seu seio. Hoje nós, do nosso Santuário, somos chamados, nesta hora de segunda conversão, a deixar-nos abalar e estremecer pela realidade e a partir.

Esta não é uma tarefa fácil, porque carregamos fantasmas e polarizações herdados e , porque o processo que vivemos nos faz reviver velhas inseguranças e preconceitos antigos; mas esta nova etapa precisa do dom que trazemos connosco: a Aliança de Amor, que traduzida numa linguagem sociológica significa cultura do encontro, espaços de confiança, colaboração, cor-responsabilidade e complementaridade.

Maria saiu ao encontro e ao diálogo com a Sua prima e este diálogo abriu-as à alegria de um novo tempo de esperança.

A minha alma proclama a grandeza do Senhor…

“A minha alma proclama a grandeza do Senhor…” O Magnificat é o cântico dos pequenos, mas também o cântico revolucionário por excelência. Sim, a palavra revolução assusta-nos, a sua carga histórica faz-nos pensar no despojamento, na guilhotina, no paredão, na luta de classes, na desconfiança, nos bens usurpados e na falta de liberdade.

No entanto, o nosso Pai fala da Mater como a primeira revolucionária e do Magnificat, como o cântico da revolução dos pequenos e dos pobres diante dos prepotentes e arrogantes.

Com o Magnificat inaugura-se uma forma de relação, já não de domínio e força, mas do valor e dignidade de cada pessoa, onde poder significa serviço e pequenez significa predilecção.

É uma mudança no esquema das relações  deformadamente masculinas : aqui o centro tem-no uma mulher e o protagonismo os pequenos.

A nossa segunda conversão é também comunitária. Como nos relacionamos, como tratamos os outros? Os outros são apenas uma projecção das minhas frustrações, expectativas, ideias, resultados, desejos e projectos?

Muito se está a reflectir sobre as motivações daqueles que usaram a violência, a pilhagem e a destruição como arma de auto-afirmação, revanchismo e vingança, de domínio e de triunfo. Claro que tudo é mais complexo, mas não estamos no reino do selfie, de nos mostrarmos vencedores de alguma coisa, como o cool, como aquele que pega e ganha? Não exacerbámos até ao limite o consumo para sermos mais do que os outros?

Uma conversão comunitária, como nos relacionamos? De igual a igual, buscando o enriquecimento mútuo? Como superamos a dinâmica das relações abusivas? Pensemos no valor do grande acordo político de ontem, alguns quase se subtraíram porque não estão dispostos a ceder, outros subtraíram-se porque não estão dispostos a perder… sempre o mesmo, vencedores e perdedores, uns acima e outros abaixo… o desafio é ser colaboradores, cor-responsáveis, complementares, o que supõe liberdade para ser e generosidade para renunciar. 

Maria, a grande revolucionária. Até o Pai ousa dizer que nos deixámos vencer pelo bolchevismo, porque eles pegaram na bandeira dos pequenos, dos pobres e marginalizados, uma bandeira que teríamos que ser nós a hastear, não pela marginalização e pela força, mas pela valorização que nos torna iguais em direitos e dignidade. Esta crise é uma nova oportunidade para que o Magnificat não seja património de novos totalitarismos ou populismos, mas de um cristianismo comprometido.

Maria ficou com Isabel por cerca de três meses…

“Maria ficou com Isabel por cerca de três meses…” Para quê? Para conversar, para fazer roupas pré-mamã, para ser cuidada e mimada pela prima que a reconheceu como Mãe do seu Senhor? Para planear o futuro? Ela permaneceu para servir, partilhar e aprender, para fazer da vontade de Deus a sua alegria.

Conversão pessoal e comunitária com consequências sociais, o que significa? Que alguma coisa muda na nossa vida, que já não podemos ser iguais. Esta menina de Nazaré deixou de estar no centro para colocar o Seu centro em Deus e nos outros. Não é anular-se, é colocar todas as nossas forças originais ao serviço do plano de Deus, que tem sempre consequências sociais, que tem sempre como contrapartida um próximo concreto.

Aqueles três meses não foram um girar em torno de si própria, foram um processo para entender o que significa “faça-se em mim segundo a Tua palavra”. Os meus planos, os meus projectos, os meus sonhos, os meus desejos, por bons e valiosos que sejam, por mais seguros que sejam, precisam estar em sintonia com a melodia de Deus: O que significa este Menino? Que consequências tem na minha vida e na dos outros através de mim? Porque fez Ele, o filho de Isabel saltar de alegria e ela curvar-se diante de mim?

Jesus tem consequências e muda as nossas vidas.

O processo que vivemos é um espaço privilegiado para que a mensagem, as palavras, os gestos e as atitudes de Jesus, com linguagens compreensíveis e inclusivas, esteja presente e actual, mas não é sem nós. Se queremos que, o pacto social e o processo constituinte que estamos prestes a começar, tenham alguma coisa das nossas raízes cristãs e marianas, isso depende de nós.

Subtrair-se, deixar que os outros pensem e participem, voltar às nossas trincheiras, não nos questionarmos a partir da nossa fé e dos ensinamentos do Magistério, do pensamento social do nosso Pai e da cultura de aliança, seria continuar a pensar em nós próprios.

Conversão no contexto da nossa celebração: o nosso Santuário é um Cenáculo, que a nossa pátria entre em estado de Cenáculo.

O Chile não voltou a entrar em estado de sítio, o que certamente teria sido o fusível de uma maior explosão social, ainda que, aparentemente, nos desse segurança. Entramos num estado de Cenáculo: de reflexão, de diálogo, de abertura ao que os outros pensam, sentem e necessitam, de partilha da nossa visão, para descobrir os passos de Deus na nossa história, nesta etapa da nossa história tão complexa e inesperada, para continuarmos a renovar o Chile, a Igreja, a Família e o Movimento.

E que Maria esteja no centro, ensinando-nos a encontrar-nos, a trabalharmos juntos, a cuidarmos do bem comum, a servirmos o bem maior.

Que a paz que tanto desejamos seja fruto deste empenho pela nossa Aliança e pela nossa Pátria. Que assim seja.

Original: espanhol (22/11/2019). Tradução: Lena Castro Valente, Lisboa, Portugal


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